Até os treze anos não tinha aprendido a ler. Na época, os adultos não se importavam tanto com o que seria uma criança. Dos onze que tive, restaram oito. Menino morre assim mesmo, não? Era comum ouvir minha mãe comentar entre um gole e outro de café com biscoito. Não existia tanto livro de psicologia, nem essa lenga lenga de trauma infantíl. Édipo, Freud e Os Direitos da Criança soavam como japonês. Ninguém entendia. Menino e cachorro eram a mesma coisa.
Havia um certo Deus dará, e, é claro, acabávamos em desvantagem. Menos acompanhamento nos deveres de casa, furúnculos que custavam a secar, lombrigas, cáries doloridas… Mas não posso negar que não havia vantagens. Aos treze anos já fumava escondido e fugia da escola. Com quinze, levei meu último bico na bunda: é hora de trabalhar – ouvi. Depois, nunca mais deixei de vender verduras na esquina, pra deixar um trocado em casa.
Sou da época em que havia um quintal e menino que se preze sumia ali. A gente se embrenhava naquela selva, cuidava do rebanho de palitinhos com rolha e sonhava com uma fazenda só nossa. Duas vezes por dia ouvia o tá na mesa. Noite nunca tive. Mal o dia acabava, vinha a janta. Menino rapava o prato e pedia a bênção depois. Não tinha birra, nem choro. Dente escovado, todo mundo debaixo das cobertas, um beijo na testa de cada um.
A luz era apagada e o dia acabava. Não me lembro de pensar no escuro. Quanto mais de ter medo da solidão no meio de tanta criança resfolegando ao mesmo tempo. Era um sono só e o desejo de chegar logo o amanhã. Havia muito o que fazer no quintal.
Vez ou outra a gente esbarrava num jarro ou escapulia um copo das mãos. Aí voltávamos a existir. Eles se davam conta de nós. O marmelo girava e se a coisa engrossasse vinha cinto com fivela. Mas quem desejava ser carne numa hora dessas?
Álvaro Andrade Garcia