Características de Obras de Imaginação Digital
Texto em redação. Versão beta 1.0, ainda rascunho.
Falar de possibilidades criativas e especificidades de um meio tão novo e ainda em mutação acelerada nos obriga a assumir uma postura cautelosa e considerar que estamos num campo experimental onde poucas obras existem, onde é grande a influência de meu trabalho autoral e pesquisa própria na formação desses conceitos aqui colocados, de modo que o máximo que posso fazer agora são algumas inferências e hipóteses. Podemos considerar os tópicos abaixo como uma lista inicial que nos ajuda a construir obras de imaginação digital e avaliar trabalhos existentes e em elaboração. Uma lista em mutação e crescimento à medida que nosso entendimento e a sedimentação de conceitos vai se estabelecendo.
a) o software é poesia (code is poetry)
Na imaginação digital, o software é a obra, integrando interatividades, interfaces de entrada e saída sensorial, multilinearidades & fragmentação, mixagem e sequenciamento de imagens. Na escrita do código ficam as variáveis, elementos lógicos básicos como os ‘if then’ ‘do while’, acesso a mídias, compartilhamento e licenças de edição. Nessa escrita são também definidas classes de comportamento, o código aceita texto e funções matemáticas. A programação pode permitir a evolução em versões, o crescimento colaborativo, a tradução facilitada etc.
Na era das apps stores de Apple e Google, podemos dizer que o que irá circular serão aplicativos, enfim, softwares. A mídia conhecida estará embutida em programas. As obras são vendidas, distribuídas, como software: o documento ganha mais inteligência, ou dizendo de outra forma, o documento-software interage, reconfigura rizomas, faz-se e desfaz-se ao sabor de sua capacidade de encontrar mantenedores e comunidades que se interessem por aquele conjunto de nós e informações. O software pode adquirir qualquer forma, integrar qualquer tipo de mídia, aceitar qualquer tipo de entrada saída.
Sendo o software o veículo da disseminação de uma imaginação, podemos dizer que a imaginação recorre também ao conceito de versão, já corriqueiro: as obras começam um dia e estão em permanente mudança depois, na medida em que surgem implementações, novas formas, possibilidades, avanços tecnológicos etc. As obras nunca estarão acabadas depois de publicadas e isso é uma mudança substancial.
Como um exemplo do poder desse tipo de construção, temos o WordPress1, um dos maiores ambientes de publicação digital em código aberto, disponível na internet. Seu código é feito por centenas de voluntários da própria comunidade e através de milhares de plug ins e temas transformam um site em qualquer coisa, interagindo com uma comunidade de 25 milhões de pessoas em todo o mundo. E é deles a frase inspiradora ‘code is poetry’.
b) recategorização de autor/leitor-espectador, agora propositores, mantenedores e comunidades
Na nova dinâmica das obras digitais, o antigo binômio produtor/receptor muda para uma estrutura minimamente tripartite. Há uma pessoa ou grupo que propõe o embrião de uma obra com um código de desdobramentos iniciais, um grupo que a mantém disponível no ar e a atualiza (mantendo-a publicada) e grupos que interagem com a obra em diversos níveis, lembrando que uma mesma pessoa pode fazer parte de mais de um grupo.
Isso implica em novas definições quanto a direitos autorais e trabalho em equipe, já que é quase impossível que uma pessoa domine por completo todas as formas artísticas e linguagens disponíveis para a realização das obras. Surgem questões também quanto à remuneração de contribuições vindas das comunidades que participam da obra.
c) descategorização e recategorização de linguagens, formas artísticas, métodos de trabalho – matemática, lógica, linguística e literatura, música, artes visuais, cinema, teatro, jornalismo etc.
Sempre é bom bater nessa tecla. O que se propõe aqui é a criação de uma nova linguagem a partir da assimilação, incorporação, remanejamento de fronteiras, uma nova poiesis. Nesse sentido não se trata de acabar com as fronteiras ou artes pré-existentes, mas recategorizá-las para trabalhar com elas em ambiente digital. Vamos lidar com imagens numa metáfora mental, onde a concomitância e interpenetração de linguagens, métodos, recursos, acabará por criar novas margens e relações entre o que até então conhecemos. A imaginação digital se espelha na forma já integrada de processamento da informação que fazemos na nossa própria cabeça.
d) a página passa à animação o status de âncora da interface homem-máquina
Apesar das inúmeras possibilidades, as interfaces de multimídia na internet ainda se baseiam na metáfora da página gráfica, com texto e fotos compondo a página e consoles de apresentação e sequenciamento de audiovisuais abrindo em janelas ou full screen e sem integração fluida com os outros elementos de tela.
A construção da imaginação digital passa pela transposição da temporalidade, leia-se sequenciamentos, à tela. Tudo é animado. Perceptivelmente ou não. A questão do tempo gera novos desafios para a construção da interface em computador. Interpolação entre estados, o uso de véus como forma de paginação, a duração e a movimentação de imagens compondo e decompondo paisagens se torna fundamental.
Isso implica em reformulação completa da interface para lidar com planos cinematográficos, áudios e elementos que não se encontram parados na tela e que sofrem mudança sintática no caso de interrupções fora dos tempos de corte.
e) Imersão e extensão da realidade
As imagens, organizadas em fluxos que proponho chamar de ‘pensamentos’, organizam-se em torno de quem assiste. Aquele que lê a obra também interage com ela e produz novos nós e links. As obras se constroem em camadas (layers) que permitem a condensação das imagens diante do leitor/escritor. As imagens se movimentam em torno de ‘centralidades perceptivas’ que podem ser chamadas de focos ou alvos e correspondem ao consciente na sua relação com o inconsciente. As relações entre imagens e suas propriedades – tamanho, transparência, movimentação, permanência, simultaneidade, interação – é que vão criar a ambientação imersiva da obra, sendo possível também mixar camadas produzidas previamente com imagens em tempo real vindas do mundo real, criando paisagens e interações novas.
f) Construção de paisagens mentais
Ampliando as possibilidades do cinema, do vídeo, da produção musical e dos livros existentes, as obras de imaginação digital não registram apenas um caminho possível da mixagem e sequenciamento de seus elementos imagéticos. Elas permitem a criação de paisagens mentais (mindscapes). Nas paisagens mentais as imagens têm suas próprias linhas de tempo (time lines), permitindo que se movimentem de forma única e diferenciada em função das entradas e saídas sensoriais geradas pelo código da imaginação. Cada elemento da tela tem sua própria animação e comportamento. Isso impacta na mudança da estrutura da produção e edição dos planos audiovisuais, criando situações parecidas com o processo musical, com síncopes, elementos que continuam no plano enquanto outros desaparecem, mudam de lugar etc.
g) Recategorização do espaço: distância é interação e não medida em centímetros
A distância como a conhecemos se torna imperceptível, uma vez que as informações dos nós estão armazenadas em computadores e trafegam a velocidades instantâneas de qualquer lugar, montando simultaneamente paisagens que fluem em qualquer outro lugar. Podemos dizer que, no espaço mental da imaginação, as distâncias serão medidas pelo número de links entre um nó e outro, e não pelas distâncias medidas em metros. A topologia da obra se estabelece em função desse mapa de distâncias a partir das associações mais diretas ou menos diretas entre os nós do rizoma.
h) Multidimensionalidade
O espaço-tempo onde se ambienta a extensão mental colaborativa não tem que ser bi ou tridimensional. Nem mesmo quadridimensional, tornando explícita a participação do tempo. O espaço da imaginação, metaforicamente mental, pode ser abstrato ou realista, pode ser construído de diversas formas e ter ‘n’ dimensões, como matematicamente e mentalmente é possível e já estabelecido cientificamente. O espaço real é apenas um subconjunto de um espaço mais amplo onde transitarão as imaginações digitais.
O que se busca é a imersão nessa amplitude: não se trata de representar a realidade cada vez mais, mas de estender nossa mente cada vez mais. Os ambientes não precisam ser apenas salas de mármore com reflexo 3d, como se vê no espaço digital rudimentar que ainda predomina. A arquitetura das obras de imaginação está liberta da representação exata da ‘realidade euclidiana’, ou mesmo ‘einsteniana’. Tal como ocorre hoje com as hiper superfícies2, uma nova área da arquitetura que estuda a fusão de espaço físico e mídia, estudando também experiências com multimídia fora da tela do computador em robôs e aparelhos em geral, o espaço da imaginação não é necessariamente o da tela de um computador, nem tem as dimensões delimitadas. Sua arquitetura faz parte da sua sintaxe à medida que aprendemos a construir novas topologias.
Há ainda que pensar na construção dos ambientes imaginários e suas representações na tradução de entradas e saídas sensoriais fora da nossa escala de percepção sensorial. Como, por exemplo, a tradução de espectros de luz, de som e de outras energias ‘invisíveis’.
i) Organicidade
A metáfora mental cria um ambiente que tem muitas características orgânicas, que podem ser exploradas na construção das obras. Crescimento rizomático com agregação, recombinação e esquecimento de imagens. Elas mesmas estão em permanente mutação, nascem, morrem, crescem, regeneram, duplicam, conectam, contaminam, comportam-se como bando etc. O código pode implementar vários desses comportamentos.
j) Construção de ágoras que levem em conta os ciclos de vida de informações diferentes
O jornal envelhece todo dia, um livro didático tem uma certa duração, outras imagens podem durar para sempre. A imaginação digital permite a organização espacial e temporal de informações que têm ciclos de vida diferentes no mesmo ambiente. Como no cérebro, há informações perecíveis que se encadeiam com informações que vão se perenizando e criando eixos e estruturas na obra.
A obra cresce em versões com rearranjos, desmembramentos e incorporação de novas interações, entradas saídas sensoriais etc.
k) Base de dados indexada e também hipertextual
O hipertexto, a hipermídia por extensão, tratam do armazenamento da memória dos caminhos percorridos por homens em nós de informação. As obras de imaginação devem pensar na inclusão de sistemas default de recuperação de informação e indexação, como o full text search, as indexações alfanuméricas, por data etc, mas também investir nas opções de navegação e de criação de links a partir da participação humana. Isso sem prejuízo da incorporação de inteligência artificial para a criação de novos padrões de conexão a partir do uso da obra pelas pessoas.
l) Construção de bases
Na era da hiper informação, vivemos no tempo dos DJs e outros profissionais que se especializam em criação de bases prévias para uso em mixagens e sequenciamentos, muitas vezes em tempo real. Muitos deles já são vistos também como artistas. Pensar em bases é fundamental para a imaginação digital, já que se criam topologias e opções de interação bem maiores que aquelas possibilidades pela consulta à obra. A meta criação faz parte também da sintaxe da obra, já que mixagens, sequenciamentos e propriedades novas incorporadas a imagens já produzidas acabam por criar novas imagens.
m) Interatividade ampliada
Ainda vivemos a era da interatividade ‘skineriana’. Um clique: uma resposta. Há muito que avançar na construção das interatividades possíveis na imaginação digital. Podem ser usadas interfaces multimodais, mais intuitivas e sensoriais, afastando o computador-ferramenta do computador-mídia. A interatividade pode ser construída em camadas: interação individual e coletiva, interação em partes da obra por meios diferentes etc.
n) Gestão do silêncio, concentração/dispersão, gerenciamento da interrupção, áreas de densidade e rarefação
Uma imagem isolada, uma imagem que dura mais ou menos, uma imagem junto com outra, a ausência, os intervalos, o controle dos fluxos, as informações que interrompem a fruição da obra, a construção de áreas de densidade e rarefação são elementos importantes. Como na música, na poesia, no cinema, o silêncio, o vazio, compõe-se com as imagens criando ritmos e pontuações, trazendo novo significado aos conteúdos.
o) Rumo à ideografia dinâmica
Na articulação lógica dos elementos dos pensamentos criados numa imaginação, podem ser usadas novas sintaxes oriundas de infra lógicas e processos mentais já estudados – composição, justaposição, negação, mitopoética, analogia etc. Decisões em rede neural, processos intuitivos, tudo isso é campo de pesquisa e experimentação.
As temporalidades e movimentações podem ocorrer sem sobressaltos indo do screen saver, do ‘quadro’, da ‘página’, à temporalidade medida pela memória, passando pelo fast forward, play, slow, e todos os tempos possíveis. Seja no texto escrito, na movimentação na tela ou na diagramação, tudo isso cria novas formas sintáticas a se explorar.
Caminhamos para a era da ideografia dinâmica, termo cunhado por Pierre Levy3 que trata justamente desse novo alfabeto e sintaxe possibilitados pela tecnologia digital. Apenas discordo do autor quando ele foca demais o termo na predominância da linguagem audiovisual. Ela será importante, mas não é capaz de dizer tudo que existe e nos passa na cabeça.
p) Processamento paralelo, computação em nuvens, pan-óptico, múltiplos dispositivos, redes e mais redes.
Estamos na era da computação em nuvem, com imagens armazenadas e processadas em milhões de computadores simultaneamente em diversos lugares. O próprio computador se fragmenta, enquanto aparelho, tendo novas formas segundo as condições de uso. As obras de imaginação se encaixam como luva nessa nova configuração da rede mundial de computadores. Ao criá-las, devemos levar em conta as possibilidades proporcionadas por essa nova realidade.
Enfim, a imaginação digital pavimenta um caminho possível para obras abertas como sempre sonhamos, cria organismos mentais estendidos entre homens e suas máquinas eletrônicas. É um ágora riquíssimo para a poiesis se manifestar. Uma arte ainda muito incipiente e nova, com enorme potencial. A nós, artistas, cabe a tarefa de tecer nessa nova urdidura. O novo nunca foi problema para nós, mas desafio.