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A Boca

A boca carnuda estava cerrada sem força. Um pequeno espaço entreaberto entre os lábios mostrava um pouco do branco dos dentes. Eu olhava atento. Ela sorriu. Um riso pacífico. Espichou-se ligeiramente e os dentes apareceram, atrás dos lábios brilhantes e tensos. O branco dos dentes tinha um tom ligeiramente gélido. Sem opacidade nem transparência, algo como a cor pura. Durou pouco a visão. Os lábios retornaram à antiga posição, deixando apenas uma pista, uma fresta.

Mais algum tempo, os lábios começaram a se mover: pareciam marolas de um lago, uma corda vibrando. Dali saíam sons e algumas palavras deveriam estar me dizendo… talvez, mas era muito perceber os sons que partiam dali. Não cheguei a eles, perdi-me na textura da língua, movendo-se e soprando o ar. Me aproximei. Senti as colunas de vento deixando os pulmões, vibrando entre o palato e os dentes. Senti aquele ar como se fosse meu, transformado em palavras.

Álvaro Andrade Garcia

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Belgrado Blues

Subject: Belgrade blues

Date: Wed, 21 Apr 1999 09:51:05 -0300
From: Santiago Arevalo
To: circular@encomix.com Belgrado Blues
Por: Jasmina Tesanovic
tradução: Álvaro Andrade Garcia
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26 de março

Eu espero que todos sobrevivamos a esta guerra, as bombas: os sérvios, os albaneses, os maus e os bons, aqueles que pegaram em armas, aqueles que desertaram, refugiados nas florestas de Kossovo e os refugiados de Belgrado, perambulando pelas ruas com suas crianças nos braços, procurando por abrigos inexistentes, quando o alarme das bombas toca.

Eu espero que os pilotos da OTAN não deixem para trás as esposas e crianças que eu vi chorando na CNN, quando partiam para seus alvos militares na Sérvia. Eu espero que todos nós sobrevivamos, mas não este mundo do jeito que está.

… Eu fui ao mercado na minha vizinhança, ele estava voltando a viver, adaptado às novas condições, novas necessidades: não há pão do estado, mas muito grão no mercado, não há informação na TV oficial, o que vale são as conversas entre a população assustada sobre quem está ganhando. Adolescentes apostam: foram nossos ou deles, os aviões que foram derrubados, nossos ou deles, quem mente melhor, quem melhor esconde as vítimas, quem expõe as melhores vitórias ou vítimas outra vez. Tudo como se fosse um jogo de futebol.

A cidade está silenciosa e paralisada. Mas ainda funciona. O lixo é levado, temos água, eletricidade. Mas onde estão as pessoas – nas casas, nas camas, nos abrigos. Eu escuto várias histórias pessoais de nervosismo. Estão todos nervosos, menos os que tiveram seu ataque de nervos no ano passado, quando a guerra no Kossovo começou. Estes são muito poucos, mas agora se sentem melhor: o perigo real é menos assustador que as fantasias de perigo. Eu não pude cope com a guerra invisível como cope com necessidades concretas: pão, água, remédios.

Eu penso nos albaneses do Kossovo, nos meus amigos e seus medos, eu penso que eles devem estar numa pior que a nossa: o medo aumenta só de pensar. Significa que não é o fim ainda.

28 de março

Toda noite eu vou com os amigos e família para a grande estação de metrô na vizinhança. Eu agora conheço as pessoas que já estão lá, de todas as idades e tipos. Eles chegam com bancos e conversa pequena. Nós pensamos em fazer um plano de emergência. Tentamos listar todos os possíveis desenvolvimentos da situação. Dificilmente alguém pode ser bom para nós, pessoas comuns que não podem acreditar em ninguém, que têm apenas alguns dólares nas bolsas e muita, muita experiência ruim. “Pelo menos não somos patéticos”, eu digo, “e nossas crianças não serão saqueadas”… Eu até digo: “minha filha será uma raridade, uma verdadeira beleza da Sérvia, pronta para morrer por nada!” Algumas culturas vão amar isso. Vai ser tão excitante para estes que temem as luzes e o trovão ver uma mirrada adolescente de jeans que não teme as bombas.

… Eu vejo o Jamie Shea na conferência de imprensa da Otan. Ele é terrivelmente preciso, você o ouve você ouve tudo isso, a realidade que ocorre para nós acaba sendo apenas um pequeno desvio do seu curso. Mas é claro que não é tão simples assim….

Eu luto por meu computador todos os dias, toda hora, todo mundo na minha família quer meu computador, o único em casa para estudar, jogar e comunicar.

Nós ouvimos nossos amigos do Kossovo, eles não querem falar no telefone, eles já estão vivendo o que provavelmente virá nos próximos dias: assassinatos, saque de apartamentos, casas, anarquia completa.

30 de março

Hoje não houve bombas. Dormi por 16 horas, sem alarme… Um jornalista da BBC disse que os sérvios são um povo com grande coração, eles não teriam assassinado o piloto do avião que caiu, eles teriam dado a ele pão caseiro e conhaque. Como podem então os generais da Otan acusar os sérvios de cometerem atrocidades contra os civis albaneses? Eu acredito em ambos…

Meu pai sonhava com bombardeios muitos anos depois que a guerra acabou, acordava durante a noite, me tirava da cama e levava ao porão: sonâmbulo. Eu me lembro dele fazendo isso, eu fiz isso noite passada, com a minha filha, algumas vezes. Eu sinto como se uma doença estivesse saindo do meu corpo, uma longa febre histórica, uma ansiedade enterrada que eu herdei por ser sérvia, de pai sérvio da Herzegovinia.

1 de abril

Passei a última noite no abrigo, três adultos, cinco crianças e dois cães. Este abrigo é uma casa com um bom porão próximo a uma estação de metrô bem profunda, a mesma onde passei a primeira noite de bombardeios sobre Belgrado, a mesma, anteriormente habitada por ciganos e mães com suas crianças. Nosso grupo era uma família psicológica, é interessante, fazemos grupos em bases psicológicas e não biológicas.

Nosso grupo estava unido no medo de ser acertado por uma bomba da Otan, ou por um guerreiro local. Ontem, um grupo de vândalos primitivos estava perambulando pela cidade, destruindo janelas e gritando contra tudo que sentissem diferente. Até que a polícia os assustou. Finalmente a polícia estava fazendo o que eu esperava que fizessem. Em 97, durante as demonstrações, eles estavam do outro lado…

… Nós estamos esperando bombas no centro de Belgrado, disse a CNN. Ao contrário, o que aconteceu foi a captura de três soldados americanos, assim disse outra vez a CNN. Esta é uma guerra suja, eu digo, pessoas no porão, soldados machucados na tv, refugiados albaneses chorando na tv, todo tempo dizendo aquelas coisas que as pessoas jamais deveriam ter que dizer, especialmente na tv. A dignidade humana aqui não vale nada. Primeiro de abril, dia dos tolos.

Meus pais estão sozinhos no seu apartamento, eles ouvem o alarme com dificuldade, eles assistem a tv oficial e a todo momento me ligam, dizendo “não se preocupe, vai tudo ficar Ok”. E eu me sinto melhor, a voz do meu pai me acalma, como quando eu era criança, ele me dá segurança. A segurança que eu não dou as minhas crianças. Ao contrário, este mundo não é mesmo um lugar seguro.

2 de abril

Hoje é Sexta feira santa… o filho de meu amigo ligou na última noite do campo de batalha. Ele quase não conseguia falar, ele dizia que estava em algum lugar sem dizer aonde, que estava Ok mas que alguns dos seus amigos não. A idade limite para voluntários que querem se alistar agora é 75 anos para homens. E para mulheres? Não há limites? Elas são frequentemente tão mais convictas do seu patriotismo.

Eu vejo um mar de refugiados orquestrados dos dois lados na fronteira da Iugoslávia, Macedônia e Albania. Isso tudo me lembra a cena que vi em 95, quando os sérvios de Krajina foram despejados na Sérvia por dias e dias, sem resistência, pensamentos, idéias de por quê e como aquilo estava acontecendo. Eu tinha uma idéia de que aquilo era orquestrado – tudo menos a dor e os atores eles mesmos, eles estavam sendo verdadeiros.

3 de abril

É manhã, uma bela manhã de sol, eu estou chorando… na última noite o centro de Belgrado foi bombardeado com uma intimidadora precisão, sim os alvos militares, mas apenas a 20 metros de um estava a maior maternidade do país, onde eu nasci e anos atrás dei a luz. Eles destruiram o ministério do interior: alguns dos meus amigos se lembram de terem sido interrogados ali.

Eu estou aliviada, feliz com a precisão da Otan, estava até chovendo, mas eu me sinto visível, exposta àqueles jovens pilotos responsáveis por atingir um alvo sem destruir um recém-nascido. Eles foram todos para abrigos, os bebês e suas mães, e eu estou chorando, aliviada, atormentada por toda esta questão de vida e morte, me lembro da minha chegada, eu era uma brava e chorava ao mesmo tempo.

4 de abril

Mais uma noite no abrigo. Outras duas pontes detonadas, a ferrovia para Montenegro foi destruída no território bósnio. Estes fatos me fazem claustofóbica, a cerca finalmente se torna visível em torno da nossa jaula. Aqui estamos, selvagens e maus sérvios do século XIII, alguns em jeans, muitos falando a Língua (o inglês), mas ainda assim diferentes, alienígenas.

Esta estratégia está completamente de acordo com os nacionalistas locais que dizem “quando a maternidade foi atingida pelo tremor das bombas, nossos bebês nem mesmo choraram, por que eles são bebês sérvios…” Bem, eu não sou um bebê, mas chorei ontem como uma louca, escutando a canção Lá Longe é a Sérvia. Um bela e triste canção da primeira guerra mundial, quando soldados sérvios foram à Grécia, para lutar, e poucos voltaram.

Meu avô foi um deles… Quando eu era uma criança ele cantava para mim esta música, quando fiquei adulta, cantava esta música fora da Sérvia, quando me pediam uma música típica daqui. Esta é uma música que sei cantar e fazer as pessoas choraram. Ontem, milhares cantaram-na na praça da República, durante o concerto. Mas eu não podia cantá-la mais, ela não é mais minha canção, esta não é minha Sérvia mais, não aquela pela qual meu avô lutou. Longe, longe é a minha Sérvia. E eu estou agora presa e em exílio, no meu próprio país.

5 de abril

A pior coisa, num certo sentido, é que nada realmente acontece. Na manhã estamos vivos, nós temos comida, eletricidade, uísque. Mas por outro lado, nós estávamos aqui, onde tudo isso aconteceu, mais uma vez, não para nós, mas para alguém. Nestas falsas execuções, nós sobrevivemos à nossa própria morte toda noite.

Eu entrei numa farmácia. Ela estava mais cheia que antes, mas não era possível obter aspirina, tranquilizantes, e todos estavam pedido por isso. Outro detalhe, as lojas de doces estão lotadas, as pessoas compram doces como loucas – angústia emocional, falta de amor…

6 de abril

Hoje é o aniversário do bombardeio de Belgrado em 41 por Hitler. Entretanto, o maior dano a Belgrado foi feito no final da guerra por bombardeios dos aliados, a chamada libertação ou as Bombas Inglesas. Eu sei que todos aqui vão usar este paralelo para se sentir melhor ou pior…

Eu estava sentada no terraço esta manhã, o sol estava me banhando com grnde amor, eu sonhava com o mar e o céu claro do qual falamos na última noite, esperando pelos ataques aéreos noturnos, pelos aviões que sobrevoam nossas cabeças. E eles vieram outra vez. Mas não bombardearam Belgrado na última noite, outra vez outros lugares, outras vítimas. Eu me sinto tão culpada, mais que nunca, por este Outro. Meus amigos e inimigos de todo o mundo me perguntam: você é capaz de imaginar quão terrível é estar no Kossovo agora? Eu consigo, realmente consigo, e me culpo, por estar me sentindo mal aqui sem ter o horror que eles têm lá. Mas nossa guerra, pelos últimos 10-50 anos tem sido sempre este tipo de horror invisível, temos ainda um longo caminho até a catarse, para nos livrar da nossa má consciência, mitos equivocados, inércia…

Sinto-me desligada do resto do mundo, mais pontes abaixo, mais amigos e inimigos nos apontando os dedos para dizer quão maus somos, mais pessoas loucas fazendo carreira em insistir no fato de sermos pessoas divinas. E o povo? Nos porões esperando por nada.

Sonhei na última noite com bombas caindo no meu porão, na minha cama e eu depois me sentindo aliviada, livre. Eu deveria parar de escrever, detesto meus sonhos, pensamentos e idéias. Isto é um vício

7 de abril

Correndo para o abrigo com comida, saindo do abrigo para comprar comida. É primavera, quem se importa? Ligando para amigos e parentes, trocando necessidades, mercadorias, medos, informação: quem foi, quando foi atingido, quem é o próximo. Nunca um porquê. Não vejo as notícias mais, eu as detesto, todas, de todos os lados, todas as verdades. Elas parecem excessivamente verdadeiras, eu não tenho distância. A Iugoslávia está desabando, que dó… aquelas pontes. Pontes sempre mandam boas mensagens: pessoas construindo pontes, pessoas atravessando pontes… Vítimas? Eu não sei, que dó por aqueles que desperdiçam vidas inocentes por que apenas alguns não podem encontrar as palavras adequadas.

É este meu futuro, correndo para dentro e fora deste abrigo, como um rato? As escolas estão fechadas, as crianças tem olhos seriamente crescidos. Dentro e fora dos abrigos. É este nosso futuro?

8 de abril

Noite passada assentamos no terraço para esperar… Ouvimos algumas grandes detonações. Meu ouvido direito ficou surdo e dolorido, como se estivesse viajando num avião. Nós começamos a apostar, meu lance absoluto venceu-me a aposta, e é claro meu corpo feminino, como um mapa de dor deste mundo. Um prédio governamental foi atingido, a apenas um quilômetro de nós. Bem, nós estávamos esperando por isso faz dias, nós do centro de Belgrado. Nós começamos a rir com alívio, quando ouvimos que não houve Dano Colateral. É assim que a Otan chama a Morte. A Otan … os Agressores Assassinos da tv Sérvia.

A voz do meu pai estava estremecida, ele não escutava nada, ele não via nada, ele já está surdo e velho para mover. Mas continuava dizendo: “o que podemos fazer agora, nada, podemos? Eu pensei que era a frigideira caindo na cozinha, mas então eram as bombas, o que podemos fazer agora?”

Na última noite o concerto de rock moveu-se para a ponte. A ponte sobre o Danúbio, que une a nova e a velha Belgrado. Nós somos famílias partidas entre as duas Belgrados, mas não nos atrevemos mais a atravessar a ponte, para ficar com nossa parte da família, no caso de afundarem todas as pontes.

Ontem teve futebol. Um jogo entre Grécia e Iugoslávia. Foi um grande evento nacional, as pessoas estavam chorando, cantando, beijando, e os jogadores tiveram dificuldade para jogar. Eu sempre pensei que a energia destas platéias podia finalmente ter uma causa humana: parar a guerra.

Um comentarista militar da BBC descreveu os sérvios como pessoas horríveis e incrédulas, que não pensam em nada a não ser em suas próprias vidas. Eu fui seriamente atingida por seu comentário, eu não gosto de louvar ou degradar qualquer povo. Eu nunca havia imaginado que há algo como o Povo Britânico, mesmo depois de passar 12 anos numa escola inglesa. Mas depois do seu comentário eu percebi que existe. Eu fico pensando como o povo inglês reagiria nas condições dos albaneses e dos sérvios.

Muito vem de nós nestas situações limite, muitas descobertas: hoje sei que meu medo, meu enorme medo, com quem lido todas as noites, quando as sirenes soam, poderia apenas ser balançado por algum ato de heroísmo. Se eu soubesse como parar a guerra…

A mulher cigana que mora no porão ao meu lado, minha velha amiga, está calma desde que os bombardeios começaram. Sua única amolação é o fato de não poder mais comprar cigarros. Ela sempre me pede um quando passo por ela. As suas falas agora são balanceadas e sábias, não usa linguagem chula, não amaldiçoa, nem agride. Ao invés de ir a uma palestra “As razões da Agressão da Otan à Iugoslávia”, na Alternative Belgrade University, fiquei escutando esta mulher. Eu não gostei do título. A diferença entre sua filha cigana e a minha agora é mínima, ambas vivemos nos porões, com muitas emoções, poucos cigarros e muita cerveja…

Um menino cigano me pediu um centavo. Eu disse que eu havia dado à minha filha. Ele me perguntou quando pintamos nossos ovos de páscoa. Eu disse, “eu não sei, não acredito em deus”… mas vou pintar meu cabelo para a páscoa, ele branqueou demais estes dias.

9 de abril

Eu me lembro, antes da guerra, esta era uma data considerada boa para fazer seu bebe se você desejasse tê-lo no dia primeiro de janeiro de 2000. Eu me lembro, o tanto que isto era ridículo e idiota, eu lembro agora como era sugestivo também. Agora que estes dias vieram, ninguém nesta parte do mundo tem estes planos. Agora apenas os cochichos sobre o que faremos se tropas entrarem na Iugoslávia. As mulheres estão esperando não estar grávidas ou pensando no que fazer com seus filhos se eles tiverem que usar armas. Duas de minhas amigas, pacifistas, feministas, disseram-me já, se chegar a situação de tudo contra tudo na guerra terrestre, elas irão pegar em armas ao invés de ficar escondidas tomando tranquilizantes. Pensei em outra mulher que acabou de ter um filho. Ela está fechada num porão e sua criança está doente. Ela não melhora ou piora a situação por Ter um bebê na hora errada, no lugar errado, pelo contrário, ela faz se tornar visível o lugar errado e a hora errada, e as ações erradas.

A lógica militar está entrando na linguagem do dia a dia. Eu nunca gostei de jogos de computador, ou mesmo de jogos competitivos. Quando a competição entra na minha mente me sinto paralisada, eu sinto diferente de outras pessoas, nem pior nem melhor.

Falamos de nos adaptar às condições da guerra, encontrar outro trabalho, novas formas de relaxar e viver. Minha amiga, uma professora universitária, disse que vai limpar casas para velhos, outro está trabalhando com crianças ciganas. Estou pensando em fazer uma escola para as crianças que vivem soltas por ai, sem hábitos de trabalho, tarefas.

Mas o assunto do dia é As Tropas Terrestres. Virão ou não? Não nos preocupamos com nossa vida pessoal, a maioria de nós não vai aos abrigos, não pensa em deixar o país… Nós estamos apenas ficando aqui, quem se importa por quanto tempo, não temos uma saída decente, somos reféns de nossa própria vida, sem poderes.

10 de abril

Hoje decidi limpar a casa, a cabeleireira da vizinhança também abriu, e está trabalhando. Todos ignoram o alarme que não parou, mesmo durante o dia. Os pilotos devem estar frustados por não ter jogado todas as suas bombas na última noite, o briefing da Otan vai ser tenso, os comentaristas militares vão especular sobre a nova ordem mundial, mas tivemos uma noite pacífica. Sem boom booms, apenas os aviões locais, que tem agora um som bem mais humano.

Amanhã é a páscoa da igreja ortodoxa. Minha filha pintou ovos. Não somos religiosos, nunca fomos, ela disse que estou enfadonha, eu pensei que seria melhor deixá-la fazer algo construtivo. Ela é uma criança da guerra, e quem sabe, ela pode ser uma criança de Deus. Ela disse ontem: “tenho um sentimento que eu vou ser morta quando tiver dezesseis, por que você então me amola pedindo para ir à escola?” Eu apenas disse “você vai para a escola de toda maneira.

11 de abril

Apenas um pequeno pensamento de páscoa: se alguém está assassinando, estuprando, fazendo a faxina étnica nos albaneses, por que eu devo ser poupada disso? Meu amigo, uma pessoa muito decente, não pode acreditar que isto esteja acontecendo. Eu acredito muito, muito que isso está acontecendo.

Na última noite Belgrado estava de joelhos, sirenes acionadas, mas multidões de pessoas nas igrejas, em torno das igrejas, para o serviço da meia noite. Estive olhando as pessoas: velhos, simples e pobres, alguns snobs e aqueles que realmente acreditam. Todos com a mesma trágica expressão.

Ao mesmo tempo, por outro lado, na ponte sobre o Sava e Danúbio, o concerto estava enfurecido, as pessoas estavam furiosas, patrióticas, acreditando na sua força ao invés da de Deus. Eu não pude encontrar meu lugar em ambos os lados. Eu não acredito em Deus, mas eu não acredito em mim mesma contra o mundo. Eu fico apavorada quando o alarme soa, e eu não quero que minhas crianças se arrisquem por nada e nem por ninguém. Então fui ao videoclube pegar alguns filmes para ver. Peguei um com o Mickey Rourke, meu ator favorito até 18 dias atrás. Ele estava tão idiota, eu pensei, ele não sabe mais nada da minha vida, ele não me ama mais, então não posso mais adorá-lo. Não dividimos a experiência da minha vida. E então teremos que separar, depois de todos estes anos…

Fui para a cama cedo e dormi profundamente. Resolvi desligar minha geladeira, que faz um barulho pior que os ataques aéreos. Decidi também limpá-la hoje, apesar disto ser um mau presságio limpar na páscoa, minha avó costumava a dizer.

Quando tinha cinco anos, minha avó me levou secretamente para a igreja na páscoa. Meus pais eram comunistas e não podiam saber. Eu me lembro do medo e da excitação quando entrei no maior prédio que eu jamais vi na vida, sentindo estranhos perfumes e vislumbres das velas, da laje ao piso, tudo ao redor de mim. Depois de um primeiro momento de alegria, eu lembro até hoje, pois este sentimento não me abandonou, me veio um sentimento de nadeza, de despoder, a visibilidade da minha pequena pessoa. Eu comecei a chorar como uma louca, enquanto berrava para minha avó: … “serei queimada, vou ser punida…” Ela saiu comigo, muito arrasada por sua missão infrutífera. Ela me comprou um sorvete e um cão de brinquedo. Nunca mais falamos sobre a páscoa ou sobre a Igreja. Nunca mais, até alguns anos atrás, quando entrei numa igreja outra vez, o sentimento era o mesmo, mas eu era mais forte, minha crise mística estava no fim, não resolvida, mas acabada. E minha avó não estava viva mais, para me dar uma resposta ou conforto.

Álvaro Andrade Garcia

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Pequeno Solo para uma Saudade

Qual seria melhor que a sensação do vento varrendo a rua? Uma observação rastejante, onde a brisa alisa e recolhe restos. Uma minuciosa escatologia, revirando tampas de guaraná, folhas de jornal. Uma pirueta com o folheto do candidato a prefeito.

A alma vazia é como um pote sem lastro, uma canção de notas únicas e distintas. Uma espécie de canto chão. A melancolia noturna lhe atrai, é melhor sofrer quando as cores estão menos decididas.

Viro o quebra-vento e deixo bater direto no rosto a sensação, sempre ela, vagarosa e morna, quase fria. A alma vazia é um poço de águas quietas. Um pasto bem sem limites. Onde a cerca existe não é.

Passam lascas e fios. Letreiros, fachos azulados e vermelhos, umas vozes. Tremenda solidão essa, entre as outras. O coração é um vaso de barro vermelho. A alma está encolhida. E a saudade agora é uma ausência inteira.

Quando se move, sussuram vozes. Nunca se escuta, nem se entende, apenas uma mão que transtorna os órgãos, e que esteja dentro. O coração sufocado, as vísceras torcidas, o fígado abalroado. Pulmões cheios de sangue. Uma bolha de ar presa entre ossos, prestes a sair pela boca ou num estouro dos olhos. A pele reveste uma paisagem pálida, cheia de gases sem perfume.

Álvaro Andrade Garcia

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A Laranja

Ela estava ali, circular e plena, encerrando todos os lados. Cintilava. Um contorno de sol. Uma laranja, quase vermelha. Se me apresentou inteira: resultado e projeto. Olhei seus lados e pensei no que faltava por conhecer. Interior e fora, antes e depois, meu sentido iria por todos os caminhos. E cada, sei, abre portas para outro. O sumo, o perfume, os nacos. O líquido escorria entre os dedos, e ainda assim me restavam facetas. Segura, estava a semente. Não que me escondesse algo. Não mesmo, é que nela há tanto que nunca. Por isso laranja vai sempre estar incompleta, apesar de inteira.

Assim a conheci hoje. Havia e faltava em tudo que via. E isso fez meu coração bater.

Álvaro Andrade Garcia

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O Último a Sair Apague a Luz

publicada em www.paralelos.org.br

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– Sou o segundo da fila e estou vendendo o meu lugar.

Foi a primeira coisa que ouvi. Já estava há algum tempo na fila. Escolhendo entre o frio da madrugada e as coceiras na bunda, assentada sobre uma calçada em destroços. A fila já estava dobrando o quarteirão quando cheguei.

Mal o dia raiava e o cheiro de café passado, o bafo de Derby no rosto. Os murmúrios de meus confilanos. Acostumado à argúcia do ouvido, logo apanhei café no sul de minas. Era fácil ser lavrador, porteiro, um estudante que não passa em nenhum vestibular. Com bebê de colo, homem mulher e jovem e velho. Todos na fila pra deixar o Brasil. Tinha gente de toda parte. Querendo sair daqui pra trabalhar.

Nos Estados Unidos dá dinheiro enfeitar defunto, e o melhor é que não precisa falar a língua. Alguém tem um esquema em Berlim, estão precisando de eletricistas no Iraque, se é dentista vai pra Portugal, agora é que tá bom no Canadá, em Londres é mais fácil ficar. Ou era, até esses atentados.

– Cheguei às duas da madrugada, e por 30 reais eu vendo o meu lugar na fila, voltou a gritar o vendedor de lugares na fila, olhando para os lados e esperando as reações, que foram as mais diversas. O confila logo adiante se entusiasmou, deu uma baforada no cigarro e disse à mulher:

– Pegar essa fila e ganhar 30 paus no final? Eu topava até levar cacete todo dia se conseguisse esse dinheiro.

A maioria discordava da atitude do espertalhão, mas ninguém faria nada se ele não ‘atrapalhasse’.

– Desde que não venda o lugar pra mais de um, não tenho nada com isso.

Sei que ele acabou conseguindo vender dois lugares, ao que parece duas mulheres apressadas. A gente nunca sabe, nem vê. Foi só um zumzumzum que percorreu a fila, àquela altura já tendendo para um certo caos. Missão cumprida, pegou sua cadeirinha, sombrinha, colchonete e se dirigiu para o ponto de ônibus. Voltava pra casa com 60 paus no bolso.

Do outro lado da rua, o sorridente despachante neném tinha investido pesado no visual do seu negócio. O muro do lote vago havia sido recentemente pintado. Era ao mesmo tempo muro, outdoor, placa e portaria de estabelecimento comercial. Só não dava pra acusar de pichação, isso não, tava muito bem organizado. Apertando os olhos pra fugir do branco de cal, dava pra ver que saltavam as letras:

NENÉM DESPACHANTE

Afobado e solícito, ele apertava passos de um lado a outro da sua ‘banca’. Percorria a fila de cabo a rabo exibindo seus conhecimentos profissionais, tem que preencher tudo com letra de forma senão eles não aceitam, tem que ter o documento de reservista, você não tem ou não cumpriu serviço militar?, tem que pagar a guia antes de chegar lá, vai lá na loteca que eles imprimem a guia por três reais e recebem o pagamento, abre às seis e meia da manhã.

Organizado por Neném, sai um grupo rumo à loteca, que deve boa parte de seus rendimentos ao fato de ser vizinha da Polícia Federal. E assim transcorria a madrugada, com Neném passando em revista seus confilas, orientando os desorientados, prestando mesmo um serviço público. Os mais encrencados viravam clientes e eram encaminhados para a mesinha, onde poderiam preencher seus formulários com todo conforto.

Neném era um negro alto e forte, olhos vivos, vozeirão de pagodeiro, touca de croché enfiada na cabeça. Com todos os sentidos em estado de alarme constante, percorria a fila e seus arredores, voltava-se para a banca, observava oportunidades e acontecimentos, conferia tudo. Na verdade, aquela fila era dele, tava em casa. Por isso, tinha que botar moral de vez em quando, fazer o quê.

E de tempos em tempos vinham os simpáticos ‘posso deixar com você’: eram as ‘agências’ oferecendo palestras sobre Portugal, Inglaterra, como obter vistos para os Estados Unidos, pechinchas e esquemas de toda sorte. Outros davam consultoria grátis, como a empregada doméstica que contava com orgulho e riqueza de detalhes a sua deportação.

– A gente sofre muito, mas vale a pena. Ficar aqui é que não dá, já não agüento mais patroa com pinta de madame, que na hora de pagar só libera ninharia.

O vendedor de lugares na fila já havia recolhido suas coisas e estava chegando à esquina. Seu carrinho de mercearia deslizava suave sobre o asfalto, carregando seus instrumentos de trabalho – cadeira de praia, guarda-sol, cobertor, garrafinha d’água e garrafa de café–, enquanto os murmúrios da fila davam conta do sucesso da operação.

O sucesso foi tanto que logo chegou aos ouvidos de Neném.

Os gestos rápidos e seus passos de um lado a outro prenunciavam o barraco. Porque Neném de alguma maneira é o dono daquela rua. E ali ele não quer esse tipo de negócio. O dele ia bem, assim como o dos parentes. Dois sobrinhos se revezam na tomada de conta dos carros, os filhos preenchem guias, a cunhada e seus filhos vendem água e café. Ele até tolerava as ‘agências’, mas espaço pra vendedores de lugar, isso ele não admitia na sua fila. Ainda mais como estava acontecendo, era um 171 dos mais abomináveis. O cara fez uma venda ‘dois em um’ e nada aconteceu.

A fila ficou de lado por alguns minutos. Neném correu até a esquina e parou logo na frente do franzino vendedor de lugares. Neném estendeu os braços para frente, eram do tamanho das minhas pernas, e travou o cidadão. Foi logo esculhambando:

Hoje tinha deixado, mas amanhã quebrava tudo. O homem assustado ainda esboçou reação. Começou a falar, mas Neném não se intimidou. Apontou o dedo exaltado, repetiu o que havia dito e começou a chutar a cadeira do vendedor de lugares. Depois de chutar o conjunto umas cinco vezes, Neném empurrou o estranho rua abaixo, enquanto vociferava: é pra não voltar, sumir, foi só hoje, amanhã o papo é outro.

A platéia reagiu estranhamente. Foi paradoxal. Muita gente ficou com pena do vendedor de lugares. Que desceu a rua e dobrou a esquina recurvando-se, apesar de esguio. Com semblante amargurado, ele sabia que amanhã enfrentaria outra fila…

O dia amanheceu e ainda faltavam duas horas pra começar o expediente. Foi quando um sorridente vigia de uniforme engomado nos disse:

– Maiores de 60 pra frente, vocês não precisam enfrentar a fila. Os primeiros 200 serão atendidos. Se alguém estiver furando ou guardando fila, vocês tem que resolver isso entre vocês mesmos, entenderam? O importante é que enquanto esperam, não saiam da fila nem causem tumulto. Lembrem-se: estamos na Polícia Federal.

E por acaso, naquele dia estava ocorrendo a posse dos novos cadetes da força. Aqueles que suaram nos concursos e conseguiram um bom emprego. O hino nacional tocava, enquanto um a um subiam no parlatório e prometiam dar a própria vida para manter a lei e a ordem na pátria. O dia estava ensolarado e os raybans estavam perfilados, refletindo distintivos.

Vez ou outra, agentes à paisana passavam entre nós com pistolas nove mms enfiadas na calça. Nos olhavam atentamente, enquanto vigiavam toda a cena. É óbvio que devia ter muita gente a fim de matar alguém ali. Mas eu sempre pensei em armas mais recatadas com tiras federais. Podiam ser como seus colegas do FBI, uma elegante capanga de couro acessada apenas na hora H.

Os caras estavam tensos porque era também o dia marcado para o depoimento da secretária famosa, aquela que estava revelando os segredos do homem da mala. E isso explicava o outro lado da rua: a fila estava andando, e já bem próximo do portão de acesso ao prédio, uma multidão de fotógrafos e cinegrafistas montava guarda na contra-calçada. Aquele exército de teleobjetivas, jaquetas e repórteres se retocando. As câmeras apontavam para a fila, mas eles não nos viam, perdiam a pauta ‘off’ do dia. Muitos mal tinham acordado e a manchete de amanhã poderia aparecer a qualquer momento.

Não cheguei a vê-la. A fila se desenrolou e atravessamos o pátio interno lentamente, contemplando a carreta do assalto ao Banco Central, entre os mais recentes ônibus apreendidos com sacoleiros que vinham do Paraguai.

Faltava pouco para o passaporte. Mas os últimos momentos não deixariam de ser eletrizantes.

Atrás da porta de vidro, junto a um longo aviso que listava todos os indispensáveis documentos da via sacra do passaporte, estava ela, o último obstáculo a ser vencido na conquista da cobiçada senha. Ela, a funcionária da polícia federal: honrando a linhagem das mulheres valentonas, ela também tinha quilos de maquiagem e jóias e se equilibrava em saltos estratosféricos, meia-idade estilo pantera, silicone sem miséria, cabelo visual muro-de-arrimo, muito perfume francês pra enfrentar o nível de tensão da fila.

Depois de esgotar o assunto de meus confilanos, ficava pensando na vida dela, todo dia ali de cara com a diáspora brasileira, aquela ralé que lhe dava irc. Só sei que já estava bem diante dela quando os dizeres do cartaz elevaram o meu nível de tensão:

Em todos os guichês, ao lado de cada funcionário, um aviso em letras garrafais: “DESACATO A FUNCIONÁRIO PÚBLICO É CRIME PREVISTO EM LEI, SUJEITO A DOIS ANOS DE DETENÇÃO”.

– Só por isso me segurei pra não dar um soco na cara dela!, bradou a estudante que atravessava pela terceira vez o calvário da fila do passaporte brasileiro.

– Sem o comprovante da última votação, você não pode fazer o passaporte. Volte outro dia.

Respirei fundo. Olhei pra ela, tentando ser simpático e impessoal. Minha hora havia chegado. Me concentrei no que fazia.

– Bom dia, aqui estão os meus documentos.

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Álvaro Andrade Garcia

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A Utopia da Modernidade Capitalista

Este ensaio foi publicado no caderno Idéias do Jornal do Brasil em abril de 1990, antes de tudo isso que andou acontecendo no mundo. É interessante agora, confrontarmos o que imaginávamos que aconteceria e o que de fato ocorreu.
Em toda parte os governos socialistas caem, derrubados pela vontade de mudanças de seus povos. Passados anos em estagnação, o modelo socialista estatal de economia planificada rui como uma seqüência de placas de dominó. Comprovada sua ineficiência, sua opressão sobre os povos e sua inadequação, é substituído por outros regimes políticos e econômicos. De cá e de lá da antiga cortina de ferro, sopra uma cortina de fumaça. Os ufanistas da economia de mercado e da eficiência capitalista ocupam a mídia e, com alarde e insistência, anunciam a morte do modelo socialista. Não se satisfazem em enterrá-lo, aproveitam para glorificar as qualidades do capitalismo ocidental. A opulência dos EUA, a saúde economica do MCE, o milagre japonês e a emergência dos tigres asiáticos. Entre nós, o discurso do choque capitalista, da sua modernidade, resultou no Brasil Novo de Collor. Pensadores e homens públicos se associam na elaboração da nova cartilha do senso comum, aí embutida a promessa de que tempos de abundância virão, se trilharmos o caminho da eficiência capitalista. O principal argumento é o de que o mundo está para se integrar num grande mercado, onde a tecnologia é a pedra de toque da nova organização da produção e da sociedade. Quem estiver fora desse mercado, quem não se mobilizar para ter a tecnologia vai se dar mal: estará para sempre condenado à pobreza.

Os antigos regimes comunistas eram ineficientes e ruíram. Contra os fatos não há argumentos. Essas idéias, na medida em que se confundem com os acontecimentos, são claras e irrefutáveis. Entretanto, gostaria de colocar algumas questões relevantes que estão ficando fora da discussão desse importante fenômeno social. É preciso ousar destoar do coro. As avaliações atuais sobre o que acontece são precoces e não levam em conta possíveis desdobramentos do processo social em curso, que poderão resultar num final infeliz para os novos adeptos da cartilha do livre mercado e da eficiência tecnológica. Estamos ao que tudo indica, substuindo a utopia socialista pela capitalista.

Há indícios de que os países do leste europeu, atualmente tão celebrados, correm o risco de desagregação e de retorno a métodos sociais arcaicos, ao invés de progredirem na direção do eldorado neo capitalista. Neles, o processo de ruína do sistema socialista estatal ocorreu de forma súbita e imprevisível, e já há sinais da instauração de uma nova ordem conservadora, nacionalista, com intolerância racial.

Há uma hierarquia fortemente estabelecida entre os paises capitalistas no plano mundial que não será facilmente quebrada pelos novos postulantes. Polônia, Hungria, Romênia tem chances de não conseguir alcançar a opuléncia das potências ocidentais. Todos não podem de uma só vez exportar como o Japão, não haveria quem comprar. Todos não podem consumir como os EUA, (que esbanja várias vezes mais energia per capita que a Suécia, muito mais fria, e tão rica quanto) o planeta aqueceria! Não será em dez, vinte anos que a alta tecnologia deixará de ser controlada pelos paises mais ricos em seu benefício. Não se faz um MIT, uma Harvard da noite para o dia.

A disseminação da riqueza e da tecnologia para todos os povos de maneira homegênea é uma questão problemática, para não dizer inviável, aos níveis anunciados pela profecia. Por essa razão chamo a atenção para o risco que corremos. Não há pensamentos vigorosos circulando. Há um grande vazio no ideário contemporâneo. Ainda são tímidas as idéias que se desenvolvem em torno de uma nova racionalidade que dê conta da situação humana na diversidade com que se apresenta tanto culturalmente, como economicamente e politicamente nos dias atuais e que tenha capacidade de permitir a estruturação da vida em sociedade de maneira mais competente e digna. Na verdade, a morte do modelo socialista estatal levou à agonia a utopia socialista e seu belo sonho de uma sociedade fraterna, justa e livre. Em seu lugar a realização capitalista aparece como o novo sonho, transformando-se na utopia da riqueza para todos. A seu lado, poucas outras ideologias permanecem, desarticuladas e sob fogo cerrado de sua convincente e crescente hegemonia. A igreja dos pobres, o chamado comunismo cristão é asfixiado pela alta hierarquia da igreja, os movimentos ecologistas perdem seu ímpeto na medida em que a ecologia se transforma num instrumento de propaganda, produção e consumo capitalista. O cidadão desaprendeu a acreditar na sua própria capacidade de imaginar e discernir formas de viver e conviver em harmonia. Isso é terrível pois pode levá-lo a aceitar e a crer em forças antigas e no statu quo, levando-nos a rumos inesperados.

A sereia cantou e atraiu para si centenas de povos que se desiludiram com seus sistemas. O capitalismo, o conservadorismo e o neo liberalismo econômico estão de volta em toda parte. Um efeito cascata imprevisível e incontrolável pode surgir, na medida em que a economia de mercado não consiga satisfazer as novas demandas de consumo elevado. O padrão capitalista de vida se difunde pela midia com imagens esplendorosas da vida nos EUA, Alemanha, França, etc., que, mesmo quando associadas a imagens de grande sofrimento psicológico e marginalidade social dos seres humanos que nelas se apresentam, guardam uma força de atração muito grande, pois o que interessa ao novo publico é a riqueza, o sonho capitalista confundido com a própria modernidade.

Por outro lado, o que se observa no mundo dos novos postulantes à realização capitalista? O que se vê na Polônia? Uma imensa dívida que medidas ortodoxas e capitalistas de ajustes não conseguem sanar. A economia não flui. O governo do Solidariedade mostra toda sua fragilidade, é um pedinte, um mendigo internacional, sujeito ao jogo de poder e de propaganda dos EUA e da URSS. O acirramento dos nacionalismos e da intolerância religiosa nesses paises é um problema para reflexão. A Alemanha, unificada sob a égide dos conservadores, ressucita antigas discussões de fronteira com a Polônia. Húngaros são espancados na Transilvânia, mulheres armênias são imoladas no Azerbaijão. Dificuldades econômicas eclodem em toda parte. Desemprego e inflação fazem seu aparecimento. Nenhum país se aproxima do capitalismo sem se chamuscar. Não se importa um modelo como esse impunemente, sem suas mazelas operacionais.

A riqueza material, mercados punjantes com tecnologias avançadas de fato são elementos que resultam em saúde física e espiritual de um povo? A Nova Zelândia, em 1915, antes da penilicina e dos antibióticos, de todo o avanço técnico de hoje, tinha uma sobrevida média melhor que a dos EUA atualmente. Cuba, com uma renda per capita baixa exibe taxas elevadas alfabetização e de longevidade. Isso serve para mostrar que tecnologia não significa necessariamente ter mais vida. Quanto à felicidade não temos meios para avaliar. Não se pode falar em felicidade per capita dos povos, mas não se pode afirmar categoricamente que o cidadão americano, alemão ou japonês seja mais feliz que outros.

A ruptura da linha de desenvolvimento socialista está repercutindo na América Latina. Governos da nova direita tomam medidas drásticas a favor do mercado e da livre iniciativa na busca do sucesso econômico. Não há tempo a perder. No continente temos ainda uma massa de população analfabeta, passando fome, sem um mínimo, nem mesmo a pobreza digna, que se vê na Europa do leste. Será que a modernização tecnológica e a economia de mercado vão dar um sentido novo à vida dessas pessoas? Tirá-las da miséria é ensiná-las a consumir mais? Que tipo de bem? Quase toda casa de favela tem uma televisão ou geladeira, a miséria acabou? O capitalismo é um sistema social neo darwinista, que prega a concorrência, e gera a seleção dos mais aptos. Como terão mais chances justamente os indivíduos e povos menos aptos? Essas e outras perguntas não estão sendo respondidas.

A eficiência capitalista se mede em fazer mais barato e mais rápido um produto, pela forma continuadamente mais acelerada com que os agentes econômicos promovem a obsoletização gerando e alimentando desejos através da mídia. Será que eficiência não poderia ser avaliada pela capacidade desses mesmos agentes em satisfazer as necessidades materiais essenciais das pessoas sem degradar o meio ambiente e de motivá-las para a felicidade? É importante fazer com que existam mecanismos de controle para evitar a proliferação de setores sociais que parasitem outros sem produzir, como o caso dos enormes exércitos e burocracias estatais e privadas. Não há a menor dúvida quanto a isso. Entretanto é preciso estar atento aos indícios. O culto da tecnologia e do mercado como caminho para a riqueza, bem supremo prometido pela utopia capitalista, associado à falta de idéias vigorosas que ofereçam novas opções ideológicas aos agentes do processo social, pode trazer efeitos inesperados e catastróficos para os povos.

Álvaro Andrade Garcia e Maria Lúcia Andrade Garcia.

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Videopoesia

versão 1: 1994

 

A utilização de monitores de vídeo para veicular mensagens poéticas é quase tão antiga quanto o surgimento do veículo. Com ênfase na dramaturgia, na interpretação visual de poemas ou mesmo na utilização de textos em movimento, videomakers sempre buscaram incorporar elementos poéticos na sua linguagem. Recentemente, uma nova possibilidade surgiu para a poesia visual com o uso de computadores dotados de recursos de processamento gráfico: a confecção de programações com poemas em movimento.

Esse tipo de videopoesia é a que tenho realizado com outros autores desde 1987. Tenho trabalhado em micros com seqüências animadas de texto que depois são exibidas na tela de videoprojetores – telões – em espaços públicos. Nada impede, no entanto, que essas programações sejam concebidas para a exibição em aparelhos de vídeo domésticos ou para exibição em salas de espetáculo.

Sete anos se vão desde as primeiras experiências com o Quarteto de Sopros. Depois realizei outras experiências como o Quadro Cinético, País e Novos Estudos. Nesse período a evolução das técnicas de desenho e animação em computador foi assustadora. Deixei para trás resoluções baixas de tela, quatro cores simultâneas e animações grosseiras em duas dimensões para hoje trabalhar com recursos que permitem altas resoluções, milhões de cores simultâneas e recursos sofisticados de animação em duas e três dimensões. Entretanto, o que mais evoluiu nesse período foi minha familiaridade com os elementos da nova linguagem poética que surge com o vídeo. À medida que fui experimentando e trocando idéias com outros poetas e videomakers, sofri transformações radicais na minha sintaxe poética.

O movimento incorporado ao texto é a principal contribuição que a linguagem do vídeo traz à poesia. Ele pode conduzir os sentidos das palavras, trazendo alterações sobre o resultado final de mensagens poéticas. Amplia a noção de tempo dos vocábulos e quebra a linearidade da leitura, revelando os textos segundo a programação do autor, com as palavras em movimentos distintos do tradicional de cima para baixo e da esquerda para a direita. Em meus trabalhos utilizei essa ferramenta para fazer com que os textos entrassem na tela – e estabelecessem contato com o leitor – de forma a privilegiar leituras inusitadas. Usei também alterações na velocidade dos movimentos. Por exigir reflexão junto com a leitura, fiz os videopoemas rodarem mais lentos que o usual para peças gráficas e assinaturas computadorizadas. Sempre que pude, introduzi a repetição na dinâmica das apresentações. O silêncio lingüístico traduzido em momentos sem texto e o retorno reiterado das palavras para novo exame, sistematiza a necessidade de se ler um bom poema mais de uma vez e de mais de uma maneira. O movimento repetitivo ressalta o caráter “mântrico” da poesia. Outro aspecto diferencial em relação à palavra impressa ou falada que a videopalavra oferece ao leitor é a possibilidade de metamorfoses: a mudança súbita de estado dos textos através de movimentos rápidos. Esse tipo de recurso faz da videopoesia uma linguagem potencialmente lúdica e surpreendente.

Texturas, cores e formas revestindo e fazendo fundos para as palavras permitem a superposição de elementos das artes plásticas no encadeamento sintático dos poemas. A videopoesia aproxima imensamente essas duas formas de expressão, tradicionalmente tão afins. A espacialidade dos poemas se torna premente nas programações. As palavras são objetos compostos e adornados segundo novas inspirações que se aglutinam ao sentido inicial do poema. Os textos têm que ser sucintos em função da legibilidade no monitor, sua maior espessura é horizontal, não mais vertical. Elementos gramaticais de ligação podem ser dispensados e substituídos por movimentos e posicionamento dos vocábulos na tela. Conceitos antigos na poesia como justaposição, analogia, áreas de irradiação semântica, podem ser utilizados/visualizados no espaço com facilidade. O uso de trilha sonora nas animações permite interseções com a música e mesmo com a poesia falada. Trilhas de suporte, interferências de ruídos, declamação sampleada, são possibilidades que o videopoeta tem para explorar.

Ao nível do impacto sobre o público potencialmente leitor, a videopoesia abre caminho entre pessoas sem hábito de leitura. A videopalavra alcança um público já estimulado visualmente, que reconhece com facilidade elementos da sua linguagem pelo hábito televisivo que tem. Além disso, os textos processados no computador abrem portas para a exploração de novos espaços de linguagem que surgem como desdobramentos tecnológicos da nova mídia: a criação de quadros cinéticos em paredes, a poesia multimídia em livros eletrônicos e a realidade virtual estão aí.

Dentro das balizas da nova mídia utilizada, trabalhei cada poema a partir de suas indicações para o translado à videopoesia. Fiz poemas pensando em videopoemas e adaptei poemas do papel para videopoemas. O importante foi conhecer a aptidão visual do texto. As programações que realizei se aproximaram e se afastaram das artes plásticas, numa espécie de namoro mal resolvido. Às vezes penso que o poema pode sucumbir às formas, texturas e cores, às vezes sinto que a palavra tem direito de se movimentar num espaço despojado de formas, quase zen. Usei pouco o áudio por privilegiar a inserção das programações em locais públicos, ruidosos por natureza, e por achar que devia ter mais dedos na exploração da nova mídia, expandindo aos poucos as novas interseções para avaliar melhor as implicações da linguagem. A única trilha sonora que fiz foi deliberadamente “incidental”, ela apenas marca climas dentro dos ritmos criados pelo movimento das palavras. A experiência que tenho diz que em locais públicos a falta de som não chega a incomodar, mas na telinha da televisão, em espaço privado ou de exibição incomoda profundamente.

Uma linha geral que tem me norteado acima da interpretação individual dos poemas, ou da exploração de novos elementos de linguagem nessa nova mídia é a exploração do anti-outdoor, que transmite emblemas poéticos camuflados na estrutura reconhecida como habitual pelo espectador da linguagem da propaganda visual. Esse embuste de linguagem, que a videopoesia permite, gera descompasso e estranhamento, quando da assimilação do texto. O objetivo é fazer com que a surpresa se transforme em desejo de assimilação mais profunda da mensagem.

Álvaro Andrade Garcia

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Poesia e Tecnologia

versão 1: 1994

Se dependesse do senso comum, poesia e tecnologia seriam palavras que jamais estariam próximas. A primeira, associada ao espaço da manipulação da linguagem, das formas de expressão do intelecto e dos afetos, estaria em contraposição à segunda, ligada à utilização de equipamentos e procedimentos produzidos a partir de referências científicas e de alto grau de acumulação de capital. Para muitos, a poesia deveria manter-se imaculada, confinada a um espaço de resistência face aos avanços tecnológicos. Entretanto, o que ocorre na prática é que a poesia não resiste a eles ou simplesmente os aceita. Ela os incorpora e gera novos sentidos.

Sempre houve interação entre a poesia e a tecnologia de um determinado tempo. Os poetas, quase sem exceção, produzem e reproduzem suas obras, valendo-se de opções que o desenvolvimento tecnológico lhes oferece. Aos que defendem o livro como a forma mais pura de veiculação literária, bastaria lembrar que a imprensa e as artes gráficas são tecnologias que surgiram e evoluíram recentemente. A máquina de escrever, por exemplo, causou polêmica no cenário da literatura; hoje, é considerada um instrumento natural para se escrever. A caneta, utilizada ainda pelos que resistem às máquinas, sofreu inúmeras modificações tecnológicas. A voz ou a declamação poética, que é talvez a manifestação primeira da literatura, também se aproximou da tecnologia pela apropriação de recursos a serviço das artes dramáticas, como microfones, amplificadores, equalizadores de som e equipamentos de iluminação.

Não quero buscar aqui o início ou o fim desses processos. O interessante seria saber o que acontece hoje no cenário da poesia. É praticamente impossível querer definir um papel para ela ou mantê-la isolada do rumo dos acontecimentos. Uma das características mais marcantes de sua manifestação é seu caráter lúdico e experimental. A poesia é uma atividade gratuita. O poeta é um indivíduo curioso, que busca no mundo sua matéria e lança mão nos espaços da imaginação de conceitos e signos, da visualidade e da sonoridade das palavras. Nesse vasto e diverso campo de atuação, ele tem se valido de instrumentos que a técnica introduziu recentemente.

Desses, talvez o que tem causado maior repercussão seja o computador. A partir da tradução de signos para a linguagem digital e de sua manipulação, surgem novas possibilidades de criação e veiculação de obras poéticas. Hoje, um texto pode ter uma versão impressa a laser ou off-set, em disco magnético ou fita cassete ou de vídeo. Numa recriação visual, o texto pode ser trabalhado em computação gráfica ou holografia. Ou, ainda, reinterpretado de diversas maneiras: musicado, transcodificado e sintetizado, distribuído pela linha telefônica, pelo fax, ou pela televisão.

Além de abrir novas perspectivas e remodelar formas antigas de veiculação e criação poética, a informática tem permitido a integração cada vez maior das artes. A transformação dos signos em códigos binários passíveis de serem processados e transladados, aproxima ainda mais a poesia de outras manifestações artísticas, como as artes plásticas, o teatro e a música. A poesia é um gênero literário que tem predisposição e possibilidades estruturais para se integrar de maneira adequada a outros contextos.

Os equipamentos e softwares que podem ser utilizados por poetas –computadores, equipamentos eletrônicos de áudio, vídeo e editoração – têm seus preços cada vez mais baixos e os procedimentos ligados à sua utilização têm se difundido e banalizado. Os custos de produção e veiculação de objetos culturais têm caído com a incorporação da tecnologia. Tudo isso contribui para acelerar o processo de apropriação e redirecionamento da tecnologia. Surge o desvio poético no panorama da sociedade, ou como já salientou Delfim Afonso Jr.:”aparecem os atalhos para o imaginário”.

Álvaro Andrade Garcia

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A Liberdade das Coisas

versão 1: 1994

Uma visita à poesia a partir da obra de Manoel de Barros*.

* Quando não especificadas no texto, as citações foram retiradas de “Gramática Expositiva do Chão”, Civilização Brasileira, 1990.

“Os bens do poeta: um fazedor de inutensílios, um travador de amanhecer, uma teologia do traste, uma folha de assobiar, um alicate cremoso, uma escória de brilhantes, um parafuso de veludo, e um lado primaveril…”

O exercício poético é uma das mais desentendidas atividades humanas. Desde os tempos da poética de Aristóteles muitos buscaram compreender e açambarcar com uma teoria a extensão do seu movimento. Com a publicação da obra completa do poeta matogrossense Manoel de Barros – Gramática Expositiva do Chão, Civilização Brasileira, 1990 – surge uma oportunidade ímpar de se encontrar novas pistas desse ideário difuso e pouco esclarecido que permeia afazeres poéticos e sagrados. Se felizmente em Gramática Expositiva do Chão o tema não se esgota ou se elucida, há nela uma vigorosa metapoética, que oferece ao leitor valiosas chaves para a instalação da realidade poética.

Abandonar as premissas e o conhecimento convencional são algumas providências necessárias para o início da conversa, da aventura que surge com a realização da poesia.

“… escrevo com o corpo. Poesia não é para compreender, mas para incorporar. Entender é parede; procure ser uma árvore.”

“Ao poeta faz bem desexplicar. Tanto quando escurecer acende os vagalumes.”

A incorporação, no seu sentido mais amplo, como o usado acima, movimenta sentidos opostos: trazer as coisas, fazer parte delas e deixar de ser para ser com elas. É o começo da posse poética.

É preciso deixar claro o que é a posse poética. Possuir é um vocábulo e um ato retorcido há milênios. O que se ensina na civilização que farfalha ao redor é o exercício da posse centrípeta, que força as coisas – e pessoas também – a se deslocar de seus movimentos para se acoplarem aos desejos de quem possui. A posse coercitiva, que molda os entes, extraindo deles a sua propriedade para servir à nossa. Nada disso interessa à poesia.

“O fazendeiro do ar”. Carlos Drummond de Andrade.

A propriedade poética não tem arame farpado, ela é justamente o conjunto de características mais íntimas dos entes, seres ou não. As fazendas do ar são terras próprias ao cultivo de novos sentidos. A propriedade poética vem do próprio, da natureza última das coisas.

Faz muito tempo desde que o último resolveu possuir tão lúcido assim, como Millôr Fernandes:

“O pôr do sol é de quem olha.”

A posse poética estende o eu, incorporando o que se apercebe até se tornar. É gratuita, na sua essência transcendental – tem a graça. É desinteressada, desimportante e não pode ser comprada ou quantificada pela simples razão de não poder ser transferida como mercadoria. Os sentidos se despertam para o ato de deixar de trazer as coisas até nós. Os sentidos têm que abandonar a pessoa e ver os entres. Permear o universo. A posse poética acaba por ceder o homem ao universo. Ele se torna propriedade de seus domínios.

“Um homem que estudava formigas e tendia para pedras, me disse no ÚLTIMO DOMICÍLIO CONHECIDO: só me preocupo com as coisas inúteis. Sua língua era um depósito de sombras retorcidas, com versos cobertos de hera e sarjetas que abriam asas sobre nós. O homem está parado mil anos nesse lugar sem orelhas.”

A posse poética traz os acontecimentos a um reencontro. Os sentidos acercam-se das emanações que instituíram as correspondências, diluindo-se. A base da poesia é o gerúndio ao infinito. O exercício poético é aprender a disser.

“Já estão a relvar os trastes… Crescem por cima de um homem, de seu casaco, de seus óculos, de seus urinóis. E entopem seus vocábulos de luxúria e escória. O homem está coalescente às coisas como um osso de ave. Dão-lhe ênfase os destroços. É ente desmanchado a monge. Formigas o descobrem pela fé. Olhando para o chão convê os vermes sendo-o. O nada o aperfeiçoa. (Mas isso não tem metafísica – como fechar um rio com trinco.)”

“Esse homem, teria, sim, o que a um poeta falta para árvore.”

“Eu via a natureza como quem a veste.”

“O homem se arrasta de árvore, escorre de caracol nos vergéis do poema.” “Minha voz é úmida como restos de comida. A hera veste meus princípios e meus óculos. Só sei por emanações por aderência por incrustações. O que sou de parede os caramujos sagram.”

Esse homem repleto de humos, que sente em si a decomposição do universo, e a entende como limo, como matéria em estado de pré-coisas, exercita a poesia, respira a graça de seu ar. Ele encontra as coisas poéticas e vive com elas a sua liberdade. Um seixo, um pedregulho que rola num arroio. Uma folha que leve cai. A curva da fumaça. Dois dentes, um sentimento. O elegante barbeiro da esquina. No universo poético as categorias caem em desuso. Não se agrupam em pessoas, objetos, matérias. No universo poético tudo tende a coisa – no sentido mais íntimo. Tudo está disposto, se entregou, não resistiu à razão do universo. A ausência do desejo, como é visto pela nossa civilização, dá aos materiais da poesia a leveza e a liberdade. Não se aprisiona uma pedra. Pode-se confinar um homem, mas não se aprisiona a sua poesia, dizia Ho Chi Min, no seu diário de prisão.

“Coisa é uma pessoa que termina como sílaba.”

“As coisas que não pretendem, como por exemplo: pedras que cheiram água, homens que atravessam períodos de árvore, se prestam para poesia.”

“Pedras fazem versos? Pergunta de Fernando Pessoa.”

A coisa, a matéria poética, livre e espiritualizada, é elemento de construção de uma nova percepção e relacionamento cósmico. A emanação do universo faz Orfeu vibrar na garganta a sede das palavras. Elas mesmas deixando de ser uma categoria, mas existindo com a intensidade do que significam.

“As palavras invadem esse ermo como ervas… Escutam o luar comendo arvores.”

“Palavras… têm carne aflição pentelhos – e a cor do êxtase.”

Brotam como mosquitos na pedra, se incorporando à matéria poética. Poemas rompem por toda parte. A gramática, como a conhecemos, se transforma. Não existe mais o sujeito agindo, através do verbo, nas coisas, agrupadas no predicado. Não existem adjetivos e advérbios moldando as palavras. Elas passam a vibrar significados, a criar áreas de influência, justaposições e interferências. Se agrupam como elementos de uma paisagem só. Elas mesmas entregues à sua natureza, livres para possuir seus significados. Passam a ser poesia. “No que o homem se torne coisal -, corrompem-se nele os veios comuns do entendimento. Um subtexto se aloja. Instala-se um agramaticalidade quase insana, que empoema o sentido das palavras. Aflora uma linguagem de defloramentos, um inauguramento de falas. Coisa tão velha como andar a pé. Esses vareios do dizer.”

“Um novo estágio seria que os entes já transformados falassem um dialeto coisal, larval, pedral etc. Nasceria uma linguagem madruguenta, adâmica, edênica, inaugural – Que os poetas aprenderiam – desde que voltassem às crianças que foram, às rãs que foram, às pedras que foram.”

Um poema criado assim não serve para nada, numa visão instrumental do universo. Essa é sua virtude: não ter serventia. Seu vigor: estar arejado e pronto para desbravar novas rotas, ou até percorrer as mesmas, encontrando nelas outras razões. O poeta fundido à matéria da poesia ele mesmo, os poemas, todos em transformação:

“Poeta… sujeito inviável, aberto aos desentendimentos, como um rosto.”

“O poema é antes de tudo um inuntensílio.”

“Os nervos do entulho, como disse o poeta português José Gomes Ferreira.”

“Produto de uma pessoa inclinada a antro.”

A força inutilizante e inviável envolvida no processo rompe como o que faz broto, sexo, terremoto ou move o sol. Nessa atividade, o poeta nem sempre é considerado nesse seu estado de universo. Muitas pessoas ainda buscam entender o que lêem. Nessa hora quase sempre perguntam:

“E como é que o senhor escreve?”

E dele ouvem:

“Como se bronha. E agora peço desculpas. Estou arrumado para pedra.”

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Álvaro Andrade Garcia

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Multimídia, Imaginação & Poesia Zen

versão 1: 1996

A cibercultura chegou. A multimídia é a sua forma mais nova de comunicação. A utilização de programas de comunicação multisensorial em computador vai se tornar cada vez mais corriqueira, à medida que o milênio chega ao fim. Falamos de realidade virtual, ciberespaço, internet, data railway, enquanto as pessoas de carne e osso se dividem cada vez mais em duas grandes castas: os muito pobres e os muito ricos. Os pobres são empurrados para a ruas, tomando conta do espaço público. Perdem pequenas propriedades, sítios, saem das favelas e ocupam as praças, as vizinhanças, as ruas, num processo intenso de tribalização. Os ricos se enclausuram nos seus castelos tecnotrônicos. Se locomovem cada vez menos e trazem para si as informações que precisam para continuar a alimentar seu espírito materializado. As ruas se tornam perigosas, o trânsito infernal, as pessoas se deslocam de casa para o trabalho, do trabalho ao shopping e de volta ao trabalho. Em seus casulos, se conectam às redes de televisão interativa, ao telefone e se teletransportam para outras partes onde não onde estão.

Num cenário tridimensional que se constroe a partir da referência do sentido tectrônico, o rico vai se tornando um paraplégico que se interconecta e se perde no seu mundo fantasioso de opções. O mundo da realidade virtual surge com cada vez mais força no ambiente urbano. É o mundo de um estímulo pornográfico que bombardeia o espírito anulado. Que vive a experiência que se dá apenas através da imagem, sem a intermediação da realidade. O mundo onde uma maçã tem cheiro de shampoo de maça. Onde a vaca dá leite em pacotes quadrados, a galinha põe às dúzias no supermercado.

Hoje, a expansão da ideía de acumulação ganha novo fôlego na circulação de mercadorias informacionais. O limite ecológico para novas indústrias e para a circulação de pessoas em seus automóveis e aeroplanos já chegou. Mas a informação é “clean” e “reciclável”. Os gigantes japoneses compram os grandes estúdios, os americanos marcam presença com as grandes redes de tv a cabo que transmitem “ao vivo”, e vendem em massa a imagem de que as pessoas estão fazendo parte dos acontecimentos. O povo parabólico já está antenado a centenas de canais de informação e em breve vai fazer compras e escolher filmes sem sair de casa.

Mas as pessoas estão em casa assentadas, cada vez mais confinadas e hiperinformadas até se desinformarem numa grande massa de consumidores eletrônicos. A casa moderna, da tv interativa, do home theather, do shopping a domicilio é a prisão mais sofisticada que se moldou.

O homem que trançava pelo planeta na época das grandes navegações terminou por conquistá-lo quase que por inteiro e agora se aquieta no final do século, acuado pela miséria que criou ao seu redor. Ele deixa que os impulsos elétricos cheguem até ele, alimentando-se através de bytes tarifados e nutrindo os mesmos grupos industriais que levantaram indústrias gigantescas como a automobilistia e a do entertenimento.

A poesia não se isola de todas estas mudanças. Ela quer penetrar nas novas mídias, ela quer se permear nas novas redes, fazer-se presente. Mas, à luz desse contexto, fica uma pergunta no ar: será que nesse momento em que vivemos, não é muito mais importante transmitir acalmar que estimular os leitores? Desestimular, diminuir os estímulos, refinar a comunicação, aumentar o silêncio, revitalizar o espírito. Será que o momento não é para a poesia multimídia e sim para a poesia zen. Será que a utilização de formas de comunicação multisensoriais não acaba moldando o nosso imaginário às imagens possíveis da tecnologia de um determinado momento e estamos esquecendo de imaginar?

A imaginação é uma faculdade que tem o espírito de representar imagens, evocando objetos já percebidos ou não e de realizar novas combinações de imagens. Essa representação mental a partir do que é percebido ou recombinado possui características próprias. Entretanto, uma imagem visual, uma imagem sonora, uma imagem em forma de linguagem escrita ou falada, ou tátil tem uma determinada representação dominada pela cultura.É esta representação que permite a troca, ou o intercâmbio entre imaginações de seus membros.

A poesia é uma forma de linguagem extremamente sugestiva, inaugural que recombina códigos de linguagem com extrema facilidade. Essa facilidade de ruptura e desconformidade, essa força da palavra inicial, faz com que o texto poético atinja com grande intensidade a imaginação de quem tem acesso a ele, e fez com que o poema tivesse uso em quase todos os processos sagrados do passado e nos processos de rebelião e avanço social contemporâneos.

Não digo que a poesia não pode ser reprodutora e conformista, ela é também isso quando o autor ou o leitor assim desejam, mas digo, e isso é indiscutível, que ela tem uma potencialidade de renovação muito grande, embutida na suas características formais de construção. A facilidade que tem para incorporação de elementos visuais e sonoros de linguagem, a facilidade para recombinação, recodificação de linguagem e fusão de imagens de diversas origens está na base dessa característica.

Eu poderia arriscar e ir mais longe. A poesia, quando penetra, é uma das mais importantes formas de transmutação imaginística das pessoas. A poesia, enquanto forma de linguagem, tem muita facilidade para evocar imagens mentais dos seus leitores, sucitando rearranjos e recriações internas. Dando vida ao imaginário, trazendo a ele novos códigos e liberdade de composição. A abertura das combinações possíveis na linguagem, os silêncios entremeados entre palavras, a formação imaginística de conjuntos semânticos, contribui de forma decisiva para essa característica.

Por isso penso na poesia contaminada pelo zen. O zen fala que boa parte do que sentimos e pensamos é ilusão, O zen transmite a mensagem de que é necessária uma revelação que vai nos afastar definitivamente da teia de ilusões que permeiam o nosso espírito. O zen renega o consumo, a acumulação e a prosa. Ele se afasta de quase todas as formas de linguagem que bombardeiam o espírito. Mas sempre esteve próximo da poesia. Os coanas, os haicais, cumprem um importante papel no descodicionamento mental. É como se a imaginação estivesse poluída com formas que eram apenas códigos para comunicação e que foram confundidos com a verdade (ou com a imagem mental em si).

Os poemas induzem, sensibilizam, despertam, descortinam, tocam de leve e suscintam as mais remotas imagens, impenetráveis pela linguagem, incontíveis no que é possível registrar. A poesia zen, a poesia chinesa antiga, a poesia de diversos autores atuais consegue quebrar a sintaxe, descondicionar e aproximar a linguagem da imaginação mais profunda e dessocializada. Talvez o paradoxo esteja diante de nós. Na era da multimídia, a poesia deve entrar nos computadores e se ligar na rede, mas é preciso ter em mente que o poema não está ali para hiperestimular moribundos. O poema deve imaginar como fazer as pessoas mais vitais. O poema deve saber dar uma banana tudo e instituir o silêncio que todos precisamos ouvir.

Álvaro Andrade Garcia