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O Teatro do Carniceiro,
de Jonathan Kellerman

Arabescos Criminais

Requintes narrativos e sutilezas psicológicas Na descrição de uma caçada humana em Jerusalém

O Teatro de Carniceiro, de Jonathan Kellerman. Tradução de A. B. Pinheiro de Lemos. Record, 544p.

Histórias com as de O Teatro do Carniceiro fazem pensar nos rumos da narrativas contemporânea. As frases bem arrumadas da literatura comercial trazem um conforto e um fluxo de sensações caracteristicos. Pretendem grudar os olhos e a imaginação do leitor aos percalços da trama pronta para consumo. O trabalho do narrador se reduz a tornar atraentes e verossímeis os acontecimentos em relação à lógica dos personagens. Os leitores provavelmente não se propõem questões desse tipo. Mas afinal de contas, todas essas histórias não foram lidas antes? As grandes tiragens invadem as lojas e prateleiras de livros atrás de um tipo de consumidor apto a reconhecer certos autores, enredos e tonalidades morais. Em O Teatro do Carniceiro não ficamos fora do círculo impiedoso das histórias de sucesso. É prato cheio para os aficionados de emoções fortes, arabescos psicológicos e finais previstos.

Kellerman escolhe um daqueles dois e três lugares típicos no cenário internacional para ambientação de seu thriller. Em Jerusalém, um maníaco sexual inicia uma série de assassinatos de moças árabes. Os policiais israelenses, comandados por Daniel Sharavi, montam, uma investigação sigilosa e obsessiva para impedir que os crimes venham a tornar insuportável a tensão entre judeus e árabes. Jogando com o caleidoscópio das várias etnias, o autor nos leva a percorrer as vielas da cidade em que fantasmas de passado histórico assediam a cabeça dos personagens.

O cerco ao assassino faz o polícia desconfiar de muitos falsos culpados, mexe com a crise de consciência dos israelitas e palestinos, para chegar a um de alta intensidade dramática. Kellerman capricha na diversidade de estímulos que leva aos leitores de best sellers. O criminoso se esconde sob o ardil de falsas identidades, enquanto agentes terroristas da OLP preparam ações explosivas em Jerusalém. Não faltam o manto de neutralidade da ONU ao lado dos serviços de assistência social prestados por religiosos católicos. Para completar, umas pitadas de neonazismo e os desvios sexuais de um psicopata.

O imaginário do fim do século não ainda saturado apenas de preocupação delirantes com o futuro. Além da ligação com as sofisticadas técnicas de mídia, da vivência da simultaniedade dos acontecimentos internacionais, estamos sob o signo da violência.

Em meio aos objetos confortáveis de contemporaneidade, sobrevive a marca do horror. Pode-se perguntar: horror de que? Jonathan Kellerman dá um exemplo, à própria revelia, da sensibilidade com que sintonizamos o dia-a-dia na era da mídia. Daniel Sharavi é o homem de princípio que um belo dia se transforma de caçador em caça do assassina. Ele procura resolver o caso do homem cinzento, mas é apanhado na contra-mão de sua corrida ao enigma.

O maníaco sexual está mais próximo dele próprio, Sharavi, do que pensa, e ira ameaçar o circulo familiar do policial. O que ele descobre é mais bizarro e doentio do que supunha. Animais e seres vivos podem servir ao gozo de um tarado por facas e rituais de dissecação de vísceras. Kellerman dá algumas pistas, com que piscadelas de olho para o leitor, de canário neonazista em que mora o criminoso não passa de grosseiro efeito teatral. Algo que não é para se levar a sério. Resta o enigma que amarra o leitor às quinhetas e tantas páginas, cujo o conteúdo é a banalidade do consumo prazeiroso da maldade.

Em livros desse tipo, o drama social de povos que se autodestroem no oriente não vale quase nada. Tudo se reduz a curtição da violência ao som de cubos de gelo que tilintam no copo de uísque. O final feliz, como simulacro de qualquer coisa menos ruim, sempre chegam para personagens e leitores em busca de emoções esquisitas.

Num diário entre o encucado herói e seu pai, este lhe diz que sua atividade como investigador também é uma arte. E enfatiza: não se esqueça disso. Kellerman, o autor, soube acolher o recado de seu personagem. A estrutura narrativa de O Teatro do Carniceiro é mais sofisticada que a maioria do que se pública no mercado. Dividido em três partes, o livro não economiza a inserção de personagens e histórias paralelas. As nuanças biográficas dos homens da equipe de Daniel Sharavi também páginas e até capítulos do texto. O uso dos flashbacks dá consistência às interpolações que atravessam a linear caçada ao assassino. O inferno psicológico do criminoso é relatado com requinte e arte, como recomendava o pai de Sharavi

Se emagrecesse o texto de situação e personagens, o forte do livro continuaria a ser a trabalhada reconstituição do labirinto psicológico em que se debate o assassino. O problema é que essas filigranas apenas confirmam que a literatura de massa está em sintonia com o espirito do tempo. Como se não bastasse assistir aos telejornais, os leitores se dispõem a abrir o livro e imaginar em minúcias o reino da barbarie e dá perversidade. Isso pode virar moda, o que se confirma na ousadia das mil páginas (ainda sem tradução no Brasil) do último livro de Stephen King.

A literatura comercial, como se vê, não vive maiores problemas. O mercado não se esgota nos países de língua culta e vai além das páginas de gossips intelectuais do New York review of books. Em O Teatro do Carniceiro continua em alta a velha regra da narrativa herdada do século passado. A trama deve ser clara, passar a impressão de que segue uma linha reta e naturalmente fluida. O autor deve Ter competência para recriar os ambientes e as circunstâncias. E mais: o leitor deve ser afagado em suas convicções de que toda causa correspondem a um leque de efeitos a serem desvendados. Nada mal para a faixa do público que prefere a verdade do contador de histórias à sua própria visão da trama. Joseph Kellerman traz como novidade o embaralhamento dos costumeiros maneirismo estilísticos do gênero best seller. Para quem gosta, há um glossário de palavras e expressões em hebraico e árabe. É a fase culta desse tipo de livro. A evocação dos cenários de Jerusalém e os capítulos psicologia do assassino forem o alibi de que ouve uma pesquisa para criar O Teatro do Carniceiro. Os clichês e a leitura pelo facilitário estão ao leitor. A gratuidade do ato de ler traduz o tédio a que chegou o maneirismo estilístico da literatura comercial. Nem o acabamento industrial do produto, nem o bata-palminha da crítica norte-americana validam qualquer baboseira. Afinal, qual é mesmo o lugar da literatura nos dias de hoje?

Álvaro Andrade Garcia e Delfim Afonso Jr.
26/5/1990

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A Casa da Rússia,
de John Le Carré

Ainda no frio

Desconfiados da glasnost os espiões de Le Carré continuam seu jogo

A Casa da Rússia, de John Le Carré
Editora Record, 397 p.

Há algo de novo no front oriental. A perestroika não consegue resolver a obsolescência da indústria e o desabastecimento crônico na União Soviética. O Pacto de Varsóvia entra em colapso com a queda dos regimes comunistas. O pluripartidarismo ameaça a existência do Partido Único, ungido nos anos 20 e exportado na era stalinista. Para completar, crescem os movimentos nacionalistas e separatistas ao lado dos conflitos étnicos. A imprensa internacional não se cansa de anunciar: a Federação Soviética não é mais a mesma. A antiga Cortina de Ferro recebe a corte enamorada de leigos e doutos capitalistas a partir de Berlim Oeste. A imaginação ocidental sobre o Leste Europeu começa a dar sinais de que precisa fazer sua própria reforma dos símbolos e mitos que sustentaram a Guerra Fria.

O irresistível John Le Carré, com a recente publicação de A Casa da Rússia, deu a partida para um novo lance de dardos ideológicos. O cenário foi montado com grandiloqüência: depois do climatério dos dirigentes da velha guarda, Gorbachev traz as novas palavras de ordem da paz, da transparência e da reconstrução. Em meio à desconfiança de que na era Kruschev o entusiasmo era mais genuíno e espontâneo que o atual, Le Carré revisita locações e personagens que o consagraram como especialista em romances de espionagem. Em sua fábula dos azares contemporâneos, reúne o editor inglês Scott Blair à evasiva e fascinante russa Katya, nas peripécias para contatar Yakov, o cientista de renome que deseja passar informações estratégicas ao Ocidente. Segundo ele, o sistema de defesa soviético seria completamente defasado e inoperante. Apenas o editor tem as condições para obter a confirmação do maior segredo militar russo. Como em toda história do gênero, entram em cena os homens cinzentos do serviço secreto. É o bastante para o leitor decolar rumo aos intrigantes bastidores dos senhores da paz e da guerra.

A moral da espionagem é mostrada como a contraface da imagem pública que Bush e Gorbachev querem passar. Nas palavras de um dos homens do serviço secreto, o fato do império inimigo estar de joelhos já é motivo suficiente para não esmorecer e espioná-lo ainda mais. Sem esquecer que se deve chutar o saco de seus súditos cada vez que tentarem levantar do chão. É edificante. O problema se agrava com a paranóia instalada nos altos escalões dos governos e agências ocidentais, que nunca têm certeza se Yakov, codinome Pássaro Azul, fala a verdade ou se se trata de agente da contra-informação. A partir desses ingredientes, Le Carré cria uma das mais intrincadas e deliciosas tramas para os amantes do gênero. Seja qual for a preferência ideológica do leitor, ele terá em suas mãos uma literatura comercial bem acabada que também pode ser lida como saborosa ironia.

Quando leio histórias de Le Carré como A Casa da Rússia, não posso deixar de vê-lo hoje, afastado dos acontecimentos que narra, passeando com seu cão esguio pelos bosques da Cornualha. Também é impossível ignorar que o nosso ex-espião de Sua Majestade guarda a mesma boa vontade para com os soviéticos que um jesuita com a indisciplina de crianças no catecismo. Recentemente, neste caderno Idéias (edição de 3/12/89, n.22), o atilado John veio afirmar sua convicção de que a Guerra Fria terminou para todo mundo, menos para os profissionais. Afastado o perigo nuclear, mais do que nunca a luta pela hegemonia na Europa se acelera. Depostos os mísseis, novas armas são empunhadas. Um jogo mais sutil se instala, com o incremento da mídia e a conquista de novos espaços para a circulação de capitais. Nessa ordem de coisas, Le Carré acredita que o papel do escritor é entrar na batalha do front europeu, arquivada por Roosevelt e Stalin, e que está para começar de verdade.

Se esses são os costumes, nada estranho que os personagens sob o influxo da glasnost percam as características de épocas menos ambíguas. Ð exceção dos homens de cinza, sempre positivos e dispostos a agir com base em muitas certezas, o editor Blair e a doce Katya vivem o jogo da simulação e da identidade inapreensível. O leitor que gosta de caracteres nítidos e definitivos por certo irá praguejar mais uma vez contra Gorbachev e suas ações. Em A Casa da Rússia, não temos certeza de quem é quem e, o que é pior, o próprio narrador se contamina com a areia movediça que sustenta os dias atuais. Palfrey é narrador e personagem a um só tempo, sujeito obscuro que participa das iniciativas do serviço secreto inglês na operação Pássaro Azul. Esse homem de fundo de cena nos relata as inquietações e as dores do demasiado humano Scott Blair. O editor inglês se torna, aos olhos do narrador Palfrey, tão enigmático quanto saber se o atraso do sistema bélico soviético é um blefe ou não. Para quem está acostumado ao preto no branco da ficção digerível, Le Carré definitivamente não facilita as coisas.

O leitor atento vai perceber que o nosso impecável romancista contrapõe os homens azedos do serviço secreto às pessoas comuns como Katya e Scott Blair. Não é à toa que as opiniões destes sobre o desarmamento não coincidem com as da CIA. Para Katya, americanos e soviéticos desconfiam uns dos outros, mas quando unirem suas forças será possível a paz duradoura. Juntos poderão colocar a casa em ordem, intervindo em conflitos pelo mundo afora. Nada mais estimulante para Blair, que andava à deriva enquanto não tinha uma razão de viver. As dificuldades de Katya e sua família o levam a realizar um tour de force para dissimular os espiões e esconder-se dos próprios atos. Nunca antes da glasnost o imaginário da Guerra Fria foi sacudido por um personagem assim. Ele aceita trabalhar para os serviços secretos ocidentais e ao mesmo tempo tem idéias exóticas, como a de que a última esperança que resta é a Utopia.

Não será repetir o óbvio chamar a atenção dos leitores para o estilo de John Le Carré. Especialmente para a maestria como desenvolve os interrogatórios que se tornam o centro da narrativa. Seus personagens falam, conversam, confidenciam e são interrogados. Submetidos ao tratamento bruto dos homens de cinza, ressaltam seu humanismo e a crença em valores triviais, como a liberdade individual e o direito de fazer opções políticas.

Neste confuso fim de século, os anti-heróis Blair e Katya servem no mundo da ficção de contraponto ao casamento de Susan, neta de Eisenhower, com Roald Sagdeev, diretor do Instituto de Pesquisas Espaciais de Moscou. A ironia dos dias atuais reservou para o falecido general de direita e ex-presidente americano ter associada sua voz ao tom da concórdia nas relações internacionais. Le Carré escolheu para a abertura do livro, sabe-se lá onde, uma epígrafe de Ike. Ele diz acreditar que os povos querem tanto a paz que um dia os governos devem sair do caminho e deixar que eles a tenham. O leitor se prepare. O day after da Guerra Fria já começou.

Álvaro Andrade Garcia e Delfim Afonso Jr.
24/2/1990

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A Chegada em Darkover,
de Marion Zimmer Bradley

A Feiticeira contra-ataca

Marion Zimmer Bradley ensaia a vitória da magia sobre técnica

A chegada em Darkover, de Marion Zimmer Bradley Tradução de Alfredo Barcelos Pinheiro de Lemos Imago , 172p.

Basta a cada dia o seu mal. Zimmer Bradley é hoje reconhecida como autora de história atraentes para qualquer clube de leitores interessados em consumir o chavão do feminismo. Passados vinte anos de sua primeira edição, o exercício de Mrs. Bradley na série Darkover pouco acrescentou ao território da ficção científica esse gênero prolixo e tanto mais chato quando não é tratado com mestria. Não é nada não é nada são onze volumes para preencher o tempo de quem sente um leve cansaço das séries televisivas e do cotidiano morno e sem sal. O primeiro livro tem lá sua inventiva. No século XXI uma supernave estelar se desvia de sua rota e cai em um planeta selvagem. Os sobreviventes precisam lutar com o ambiente hostil e estranhas forças psíquicas até construir seu novo lar. É o conhecido mito da origem, são contado e recontado à exaustão nos últimos séculos por todo autor de renome que se preze.

Quando a série Darkover começou a ser escrita, a moda era o amor livre, as comunidades de seus sentidos e sentimentos.

Como nas antigas lendas da Terra (leia-se nos mitos anglo-saxões), o futuro está completamente voltado para o passado. Apesar de anticoncepcionais à base de hormônio injetáveis e propulsores MAM que levam a Alfa Centauri, não faltam ressonâncias do tipo Eram os Deuses Astronautas e memórias de canções que falam do amor de um peregrino por uma fada. Sem perda de tempo , a compreensiva Marion estende a seus leitores os princípios de sua antropologia. O homem primitivo deve ter reunido poderes psíquicos que permitiram a sobrevivência e o desenvolvimento antes da civilização e da tecnologia. Reinava a percepção extra-sensorial, não havia entrado em cena a madrasta civilização e o cortejo de suas desditas. Alucinações, intuições e viagens astrais parecem fazer parte, aos olhos da ficcionista, do mapa do tesouro que a humanidade guarda sem saber.

Ao se aproximar do fim do primeiro volume da seria Darkover, o leitor vai encontrar seres alienígenas que fecundam mulheres da Terra e os modos de Camilla soa mais contemporâneos, como no caso dos vários filhos que possui com pais diferentes. O amor, desejo sexual e a vontade de ser feliz repetem sem muito colorido um hino aos fundamentos de uma civilização que não alternativas, o movimento hippie e seus congênitos. A cabeça das pessoas se ligava em tudo que tivesse a aparência de novo e do fascinante. Como é usual na ficção científica, o romance de Marion se prende mais uma vez aos traumas do tempo presente. O futuro não passa de uma projeção tosca de anseios e inquietações corriqueiras, cabendo à narrativa abrir o espaço de imaginação para o que se lia diariamente nos jornais. Eis a terra do próximo século na ótica da ficcionista de plantão: um planeta superpovoado, poluído, com a saúde pública controlada pelos avanços técnicos. Seus acham antiquadas atitudes como a do herói Rafael MacAran, que prefere escalar uma montanha em vez de usar o teleférico. Ele fatalmente forma um par com a altiva e obstinada Camilla Del Rey, cujo o nome de cantora de bolero esconde de fato uma personagem feminina vencedora como outras que são mostradas na saga de Avalon. Entre o afeto de Rafael e o amor do comandante Leichester, ela prefere se impor e ficar com os dois.

A autora sabe jogar com a descrição das paisagens extra-terrestre em que sobressaem os extremos do calor ao meio-dia e da nevasca à meia-noite, o ataque das formigas-escorpiões, flores e frutos que crescem rapidamente sob climas violentos. Chamam a atenção quatro luas multicolorida se um incrível vento que traz um pólen ou vírus capaz de levar as pessoas à satisfação imediata de seus desejos passionais. Na verdade, Vento Fantasma – como é chamado personagem – faz também com que os terrestres adquiram poderes extra-sensoriais ao gosto de narrativas em que a magia e a realidade têm que andar de mãos dadas. Mrs. Bradley não dispensa imagens levemente ridículas narrando o delírio psicodélico dos personagens, como um homem com a perna quebrada que sai correndo até cair rindo para uma das luas, enquanto um tigre lambe seu rosto carinhosamente.

Assim como não se vê à vontade com os efeitos do inusitado vento alucinógeno, Marion escorrega na sua visão da técnica e suas aplicações. Ela ridiculariza os homens que não conseguem dar um passo sem o apoio da boa e segura tecnologia. A nave interestelar resume o avanço e a competência alcanças do pelo homem no século XXI. A queda no planeta desconhecido faz dela uma fuselagem pesada e sem função. A máquina contamina a imagem de MacAran faz de si mesmo. Ser civilizado é o pecado original dos heróis em Darkover. Não há caminho de volta ou ponte com a história que ficou para trás, só é possível olhar para frente. Esse insensato futuro preconizado por Marion Zimmer Bradley não deixa de ser engraçado e soar hoje ligeiramente anacrônico. A nave precisa ser destruída. O computador, que levara o comandante a devanear sobre a própria semelhança com deus, deve ficar reduzido à condição de biblioteca até o dia em que os homens consigam retirar de si mesmos (de suas almas?) o conhecimento já armazenado na máquina. Nada como um ficção cientifica depois da outra para repetir que o destino da técnica e, por tabela, do homem é insano.

Marion Zimmer Bradley encontra espaço em sua narrativa para descrições líricas sob um novo céu e uma nova Terra. Em seus bons momentos. A ficcionistas nos mostra o êxtase de Camilla, embriagada com a natureza. Em Darkover, os personagens encontram sua juventude restaurada. Há mulheres feitas de flores, o sol da infância bate nas pálpebras de homens adultos e, nas palavras da autora, paira uma euforia gloriosa sempre que os terrestres são acometidos dessa estranha visão que modifica a lógica das coisas. Ao embalo das descrições fortemente marcadas de erotismo e sensoridade, Camilla e seus companheiros de aventura passam a desenvolver a percepção Sensorial. È comum na narrativa que alguém esteja ouvindo o que os outros pensam e tendo pressentimento de que algo está para acontecer. Enfim é a maneira que Marion encontrou para liberar seus personagens da opressão que ela prevê como a moeda corrente do futuro. Através de suas pulsões, todos se tormam humanos, estranhamentes humanos, com a expansão se cansa de cantar a si mesma. A cada sociedade, o autor que ela sustenta e merece. A chegada em Darkover não leva o leitor que esteve com Marion na Atlântida, em Tróia e na Távola Redonda, a correr riscos algum de ir além do que preza a nossa boa e segura indústria editorial.

Álvaro Andrade Garcia e Delfim Afonso Jr.
2/12/1989

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O Negociador,
de Frederick Forsyth

‘glasnost’ por um fio

Frederick Forsyth confirma seu talento para tramas em que realidade e ficção podem ocupar territórios contígos

O Negociador, de Frederick Forsyth Tradução de Aulyde Soares Rodrigues. Record, 396 p.

Forsyth volta a atacar. E com artilharia pesada, a mesma que usou para conceber seu melhor romance, uma das mais bem arquitetadas e mais populares história de ação da moderna literatura do Ocidente: O dia do Chacal, que narra as tentativas de crime organizado em escala internacional para liquidar o ex-presidente francês Charles De Gaule. O livro é tão bom e fez tanto sucesso que o editor nunca hesitou em utilizá-lo como uma espécie de luminoso na capa dos romances de Forsyth escrevia mais tarde, como alias acontece com este O negociador. Aqui a história começa no futuro e vai penetrando. Mas um futuro bem próximo, o que amedronta o leitor de hoje e o faz pensar que tudo esteja prestes a acontecer. Como se uma agulha lhe rondasse a veia de um dos antebraço ou um cego penetrasse numa casa desconhecida e atulhada de finíssimos cristais.

Desta vez Forsyth inventou uma bossa que, infalível no mundo do cinema e da tevê, na literatura é pelo menos usual. Não me lembro de ter visto elenco de personagens nos livros de ficção que já passaram sob meus olhos. Aqui ele aparece reunidos por nacionalidade – americanas, russos, europeus… – e apresentam nomes extraordinários: Mikhail Gorbachov, secretário-geral do PCUS e Margareth Thatcher, primeira ministra da Inglaterra, para dar só dois exemplos. Apesar da força de sua imaginação, Forsyth não pode introduzir o republicano George Bush nessa invulgar galeria de personalidades. Afinal o presidente norte-americano nem de longe sustenta o perfil político que o nosso mestre idealizou para John cormack, democrata convicto, ultraprogressista e decidido a assinar com a refrigerada União Soviética de Gorbachov um tratado de desarmamento de longo alcance. Como Gorbachov, Cormack vislumbra com esse gesto – levado a cabo em Nantucket, pequena ilha do litoral da Nova Inglaterra – garantir um futuro de paz para a humanidade e desviar para o campo das pesquisas energéticas as gordas somas que se queimam na fabricação de sofisticadas armas de guerra.

Mas é evidente que um gesto tão largo jamais deixaria de produzir uma contrapartida igualmente grandiloqüente. O embrião do contragolpe pôs-se a crescer tão logo a ideologia da não-beligrância começou a ganhar corpo.

Enquanto Cormack e Gorbachov se abraçavam na bucólica Nantucket e produziam uma imagem que as câmaras de tevê revelariam a milhões de emocionados telespectadores, o ultraconservador texano e magnata do petróleo Cyrus Miller esboçava um riso cínico em seu escritório, no último andar de um suntuoso edifício no centro de Houston. Disposto a ir às últimas conseqüências para enterrar os sonhos de Comarck e expandir seu império para muito além das fronteiras dos EUA, Miller associa-se a políticos reacionários, capitalistas, sem nenhum escrúpulos e mercenários de baixíssimo calão, para arquitetar o diabólico plano Álamo. O armador Melville Scalon é seu braço direito e o renegado Irving Moss o seu melhor marionete. A trama é mirabolante e inclui fantasias com que muitos devem sonhar mas que só poucos se atreveriam a levar adiante: a supressão da dinastia real saudita e o controle de Riyad e dos campos de petróleo de Hasa. Estaria decretado assim o fim monopólio petrolífero! Tão incrível projeto saiu da cabeça do consultor de segurança Robert Easterhouse, especialista em Arábia Saudita, e se daria a partir da ação do grupo do Santo Terror liderado por um imã que devota ao rei e sua família o mais patológico dos ódios. A casa de Saud dominada pelo poder xiita seria um feito inaceitável, e de Omã, passando pelos Emirados, até o Kuwait, Síria, Iraque, Jordânia, Líbano, Egito e Israel, se ouviriam pedidos de intervenção americana para salva-los do Santo Terror.

E mais ainda: para desestabilizar Comarck, criando-lhe estorvos os mais cruéis, o Álamo articula o seqüestro do único filho do presidente, o jovem Simon Comarck, durante sua viagem de estudos ao Balliol College, em Oxford, Inglaterra, desencadeando a mais espetacular mobilização da comunidade de informação ocidental: Scotland Yard, Cia, FBI. Mas a manobra foi excessivamente bem trabalhada para ser resolvida por seres humanos normais. Era preciso que Ele chegasse para decidir. Quinn, o negociador – veterano do Vietnã, várias vezes bem-humorado mediador na libertação de reféns em poder de organizações extremistas – que deixa suas plantações de uva no interior da Espanha para descer aos infernos e punir rufiões.

Do outro lado da cortina, membros do PC soviético descontentes com os ventos democráticos do governo Gorbachov preparavam uma bomba para torpedear os planos de seu nem tão gentil camarada. As lideranças desapontadas com a retina da Cabul têm sede de expansão e para isso precisam de armas. O petróleo também é um problema (extrair óleo na Sibéria e no Ártico dá trabalho e requer somas enormes), e a conquista do fogoso Irã poderia ser uma belíssima solução.

Vejam em quanta enrascada meu velho amigo Frederick procura meter seus leitores, daqui, dali e de muito além, pois seus livros chegam até a Polinésia, passando pela África e a Ásia. Seus personagens falam centenas de línguas e obedecem a leis sintáticas que em alguns casos eu reputaria obscenas. Juntos, seus livros já venderam entre 40 e 50 milhões de exemplares.

Há pouco, em comentário sobre o último livro de Robert Ludlum, A agenda Icarus, disse que com a era Gorbachov a exploração do confronto Leste-Oeste havia perdido a graça nas narrativas de intriga internacional. Com sua habilidade, no entanto, Forsyth achou um jeito de reinjetar sal na já bem-lavada e combatida carne seca. A luta já não se trava entre as nações, inflamadas pelo binômio ideológico comunismo-capitalismo que antes as separava, mas no seu próprio interior. A roupa suja se lava na própria casa, em tanque de guerra , com água pesada.

Dizem que, talvez em conseqüência de seu sangue de repórter de guerra, Frederick Forsyth escreve sem lirismo, que suas histórias se ressentem da ausência de poesia. Acho absolutamente desprezíveis comentários desse jaez. Se as suas histórias faltam essas virtudes, elas sobram em sua personalidade de homem de letras. Quanto mais Frederick vende seus livros, tanto mais ele sua a camisa para superar-se, atribuindo grandeza a um gênero que nunca passou de primo pobre aos olhos dos que vêem literatura como algo que mora longe do prazer. Forsyth arma textos de ficção com a audácia dos mais audaciosos, e por isso também merece as alturas.

Álvaro Andrade Garcia e Delfim Afonso Jr.
28/10/1989

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A Agenda Icarus,
de Robert Ludlum

Perigo sob os turbantes

Nem russos, nem amarelos, em seu mais novo romance, Robert Ludlum exibe vilões do mundo árabe

A Agenda Icarus, de Robert Ludlum
Guanabara, 645 p.

Ao deparar-se com A Agenda Icarus, último sucesso de Robert Ludlum, a sensação que se tem é de pavor: afinal são 645 páginas que terão de ser enfrentadas. Mas a fama do autor anima; faz com que se queira abrir o tijolo para conferir se a habilidade do oleiro ainda continua afiada. Começada a história, tudo fica mais fácil. O livro consegue cativar, dispensando, para sua total deglutição, o consumo de colagogos ou anti-ácidos.

O parágrafo de abertura do primeiro capítulo é barroco. Ludlum inicia a narrativa com aquela velha idéia de céu chumbo-escuro, prestes a desabar. O leitor pressente que há algo de sombrio e podre no ar. É transportado para Mascate, a capital do sultanato de Oman, na Ásia. Fanáticos árabes invadiram a embaixada americana e fizeram reféns. Não demora muito e o herói dá o ar de sua graça. Evan Kendrick é um obscuro deputado do Colorado, conhecedor profundo dos países do Golfo Pérsico. Sua missão? Lutar pela vida dos 236 inocentes presos no simulacro.

Na primeira parte do livro, o leitor encontra o Oriente Médio em chamas e é enredado em 218 páginas de muita ação. O pique é muito bom nessas páginas iniciais. Acho sinceramente que Ludlum poderia ter parado aí. Na segunda parte, o leitor é transportado para os Estados Unidos, onde grupos secretos de milionários, gente da CIA, do FBI, terroristas, mercadores de armas, deputados, se envolvem numa operação – cognominada Agenda Icarus – cuja meta é o controle político do país. A terceira parte é fininha (32 páginas) e, ao meu ver, absolutamente dispensável. O livro terminaria bem melhor sem ela.

A Agenda Icarus acaba sendo dois romances distintos. Com a astúcia que lhe é peculiar, o autor conseguiu costurar as tramas numa só, utilizando os mesmos personagens. Eu prefiro o primeiro. O segundo começa mal. Suas primeiras 150 páginas são de lascar, muito chatas. A narrativa abandona o Golfo, as prisões e becos, os terroristas árabes, para acompanhar a política norte-americana, que, cá entre nós, consegue ser mais cacete que as comédias protagonizadas por Dean Martin. Conversa fiada, a tevê e a imprensa escrita fazendo a cabeça de eleitores e discursos enfadonhos ocupam parágrafos e mais parágrafos. Quanta monotonia! Só mais tarde, quando a nova trama começa a se esboçar e os fatos passam a produzir ação, é que o livro recupera a empolgação do início.

A história é contada naquele clássico esquema da narrativa linear, com princípio, meio e fim. Um ou outro flash-back. O narrador tem um forte tropismo pelo herói e corre atrás dele o tempo todo com uma câmera fixa na mão, não deixando que qualquer de seus passos fique sem registro. Ação é o que não falta; os diálogos quase sempre vêm sob medida. Vez por outra entremeia falas sem identificação – em geral de vilões, acentuando o clima de suspense – ou se detém nalgum personagem que só mais tarde terá importância.

As descrições são exatas. Aliás Robert Ludlum sempre fez questão de falar através de um narrador altamente qualificado, que dá a impressão de saber de tudo. Nessa Agenda alcança as raias da minúcia ao explicar que um vôo de F-106 da Sicília, na Itália, a Oman pode ser feito em quatro ou cinco horas, a depender dos ventos mediterrâneos predominantes. Noutra passagem diz que o prefixo usual dos telefones de Mascate é 745. Isso me atrai. Uma coisa de que gosto no livro é a pesquisa que dá cor local à narrativa. Um livro de ação sem isso não se qualifica. O autor fez o melhor possível. O romance é recheado de informações sobre países árabes e expressões não traduzidas para o inglês. Robert Ludlum nos mostra seus hábitos, explora sua maneira de conceber e pensar o mundo. “Ajude-me com a thobe e o aba, por favor”. “É o seu Deus, ya Shaikh, não o meu”. Baklava bohrtooan, nos ensina, é “torta de limão”; e Shvartzeh Arviyah é algo como “negra árabe”.

Em alguns momentos há uma certa exorbitância nos diálogos e a coisa fica meio maçante. Homens adultos e importantes discutem obviedades e há redundância a mancheias. Conversa demais jogada fora. Mas alguns desses diálogos chegam a ser divertidos. Os americanos dizem `porra’, `merda’, `caramba’ o tempo todo. Nem o presidente foge a esse linguajar contundente, chulo. Essa é a ambientação, a cor local made in USA, que se completa com a visão que o narrador passa do político da terra. Deputado e senador que se prezem têm que ter o rabo preso. Seu passado está inapelavelmente associado a sujeira sexual, ligações com a máfia, tráfico e consumo de tóxicos. Lendo A Agenda Icarus, a gente começa a achar que Washington é o império da chantagem e da corrupção. Parece que ali ninguém está livre de canalhices. E como gostam disso os compatriotas!

Ludlum se cerca de todos os cuidados necessários à concepção de um herói sem defeitos, de caráter irrepreensível. Tudo em Evan Kendrick – todos os seus atos, até os mais bárbaros – se justifica. Não é à toa que o narrador ponha Kendrick a curtir reminiscências e inunde o leitor de flash-backs que trazem à tona as atrocidades cometidas pelos árabes no passado. Isso faz irromper em ambos o desejo de vingança, dá ânimo aos dois e faz o leitor se esquecer de que tudo é ficção.

“- O que estou fazendo? – gritou Kahleha para si mesma. Aquele não era o momento para pensar no passado, o presente era tudo.” Ação, essa é a matéria do autor. O presente é tudo, o passado só pode existir para dar justificativas ao leitor, mostrar-lhe que o personagem tem motivos de sobra para se meter em tanta enrascada e não raro ser impiedoso, vingativo. Uma vez conquistado, o leitor tem que invadir o mundo dos protagonistas. Uma narrativa presentificada puxa naturalmente o leitor até o fim do livro. Mas essa não é a única estratégia que o autor usa para manter o leitor ali, com a cabeça presa à ratoeira, até o ponto final. Ludlum não só é um escritor contemporâneo, como também tem consciência disso. Ele sabe perfeitamente o que as pessoas querem ler e abusa dos condimentos necessários à satisfação de seus desejos. Robert adora meter combustível no fogo. Afinal, para esse tipo de leitor, quanto mais quente melhor.

Robert Ludlum está absolutamente a par da última moda em matéria de vilania: árabes, mafiosos e latinos da droga assumem hoje o papel antes reservado a outras etnias. Os russos da glasnost não entram em cena. Com sua perestroika, Mikhail Gorbachev acabou por retirar quase todo o sal da carne seca. Perdeu a graça falar em ` perigo vermelho’. O `perigo amarelo’ também já era. Os maus agora usam turbantes. O maniqueísmo é salutar para uma boa trama de ação. Bons movidos a sede de vingança e senso de liberdade e maus impulsionados por dinheiro e fanatismo, como no caso dessa Agenda. Uma boa mistura. Isso também rende páginas que dão gosto de ler.

Na política, especialmente no Oriente Médio, sempre é bom ter alguém por trás de tudo. Um livro de intriga internacional pressupõe organizações subterrâneas agindo, manipulando a realidade ao redor, como se pessoas e fatos fossem marionetes. O herói é um candidato ao teatro de fios, mas se rebela. Ele é um índividuo especial, que descobre a engrenagem e tenta se livrar da manipulação. Evan Kendrick, o herói, faz isso muito bem. Conhece a verdade que os personagens só têm parcialmente e que o leitor, no mundo real, jamais alcança.

Kendrick é um personagem sem substância, mas determinado, como deveria ser. Vai desempenhar bem suas funções e merece ouvir belas palavras na página 313. É o nosso presidente quem o elogia: “Acabei de ler todo o material secreto sobre as coisas que você fez e devo lhe dizer que estou muito orgulhoso…” “Sua atitude, Evan, como indivíduo, será uma aula para gerações de jovens americanos.” Só o herói pode vencer as obscuras organizações associadas aos inimigos.

Alguém poderia acusar o livro de americanófilo. Mas ele é isso mesmo, do princípio ao fim. Fala do fanatismo e ignorância dos inimigos, revela a força do índivíduo WASP (White Anglo Saxon Protestant), mostra o político corrupto e milionários com interesses escusos contra um empresário bem sucedido que quer ganhar seu dinheiro honestamente. Tinha que ser assim. Afinal não são os árabes nem os políticos que sustentam o mercado editorial. Robert, entretanto, se previne. No início, o narrador é meio anti-árabe, mas depois se redime, chegando até mesmo a dizer que há bons árabes. Os que dão cobertura aos EUA e ao Mossad, é óbvio. Cômico, não? Para os que se interessam por esses temas, na página 425 há uma fantástica discussão sobre a diferença entre `terroristas’ e `guerrilheiros da liberdade’.

Prefiro comentar a atuação de uma meia-árabe com pele cor de amêndoa, uma bela e sedutora mulher chamada Kahleha. Ela desempenha bem suas funções. É uma criatura inteligente, forte, decidida. Muito bem cunhada. Aproxima-se de Evan para cumprir tarefas profissionais, chega a receber ordens para executá-lo, mas depois teme por ele. Ela é fantástica, na rua e na cama. Durona e misteriosa, faz bem o tipo da heroína moderna. Eu gostaria de conhecê-la.

Se A Agenda Icarus é um livro bom ou ruim, não sou eu quem deve dizê-lo. Isso cabe às listas de vendas. A editora é de porte, o autor anda que nem pão na boca da massa e o esquema promocional foi muito bem montado. Particularmente, fiquei satisfeito com esse romance. Se expressei aqui uma ou outra restrição, não me recriminem. Apenas defendo o leite das crianças. E o Robert sabe disso. Minhas opiniões, como as dele, nunca correspondem à realidade.

Álvaro Andrade Garcia e Delfim Afonso Jr.
30/9/1989

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O Diário de Um Mago e o Alquimista,
de Paulo Coelho

O Viajante do novo astral

A magia de Paulo Coelho é mais corriqueira do que aparenta

O Diário de um Mago, de Paulo Coelho
Editora ECO, 246 p.

O Alquimista, de Paulo Coelho
Editora Rocco, 247 p.

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Certa vez estive com Jackie Collins em Londres. A debochada escritora de sucesso me confessou: “Tom, as pessoas realmente gostam de ler sobre três grandes temas: pobres que se tornam ricos, a empolgante trip do poder e a psicologia barata dos relacionamentos”. Para ela, essas eram as fórmulas certas para um livro ser best-seller. Não discuti, apreciei a colocação e guardei a frase no micro, para um dia voltar a pensar nela.

Acredito que a civilização está se cansando desses temas. Afinal, são anos e mais anos de publicações e autores bombardeando o leitor com variações sobre a mesma coisa. Ninguém aguenta mais ouvir falar de jogadas para subir na vida, poços de petróleo, governantes corruptos e trama de espiões, quanto mais de conselhos de psicólogos e empresários bem sucedidos. O best-seller tradicional está em xeque. De tanto copiar o mesmo modelo, parece que o filão está secando. Acho que o público quer novos assuntos, novas aventuras!

Cresce o interesse do público por castelos medievais e terras exóticas. O mercado se renova. É o que se vê nas listas dos mais vendidos. Boa parte dos assuntos em voga foge do padrão descrito por Jackie. Quem não quiser sair do negócio, é bom aprender com os pioneiros da onda ocultista.

Recebi recentemente dois livros de Paulo Coelho, um desses novos autores de sucesso. Ele não se encaixa em qualquer rótulo preconcebido. Mora no Rio de Janeiro, América do Sul, compõe músicas no gênero rock ‘nd roll, frequentou diversas seitas místicas e hoje viaja pelo mundo seguindo trilhas sagradas. É a saga do peregrino na busca de sua Lenda Pessoal.

Em O Diário de um Mago, narra suas aventuras percorrendo o estranho caminho de Santiago – uma rota de peregrinação muito famosa séculos atrás, que vai da França à Espanha. Movido pelo desejo de encontrar a Espada Mágica, que não conseguiu obter durante um ritual na serra do Mar, Paulo se envolve em aventuras e desventuras com seres de carne e osso e do além. A viagem a pé pelos 700 Kms que separam as duas cidades é pretexto para a descoberta do Verdadeiro Conhecimento. Para isso conta com a ajuda de Petrus, seu guia espiritual, designado para acompanhá-lo. Ao longo do caminho uma série de peripécias, como duelos com o Demônio e outras forças que procuram afastá-lo do objetivo, dá a oportunidade para que o Guia e o Aprendiz travem diálogos onde o autor revela sua Sabedoria Pessoal. Durante a história, o Guia vai ensinando alguns exercícios exóticos, como o ritual do mensageiro, o exercício do enterrado vivo e o da audição, entre outros. Essa culinária mística é oferecida à parte em páginas destacadas, onde o autor descreve seus passos para que o leitor possa participar.

O Alquimista conta a história de um jovem pastor espanhol que é acossado por um insistente sonho. Depois de decifrar revelações de uma cigana vidente e do Rei de Salém, vai ao norte da ãfrica e atravessa o deserto em busca do seu Tesouro. Nessa viagem ele conhece o Amor, a Linguagem do Mundo e um Alquimista que vai ajudá-lo. Novamente a peregrinação tem o objetivo de revelar segredos esotéricos ao alcance do homem comum. Ele é escolhido para sofrer provações de toda sorte, antes do desfecho final. O Aprendiz dialoga com o Mestre Alquimista e chega a conversar também com o deserto, o vento, o sol e outros companheiros de viagem.

Depois de passar pelos dois livros, também me vi como um místico e tive a ligeira sensação de dejá vu. As viagens de Paulo Coelho no caminho de Santiago, ele mesmo não nega, são uma espécie de Carlos Castañeda II – A Missão. Em O Alquimista, as descrições são mais líricas, e o livro deve lembrar ao leitor de um certo Malba Tahan aqueles chavões da sabedoria e crueldade dos árabes e do deserto. Ao longo dos dois livros, as etapas do Caminho do Conhecimento, descritas por Castañeda, são repetidas por Paulo Coelho. A diferença entre os dois autores se dá ao nível da linguagem e da cabeça dos personagens. Se o Aprendiz de Castañeda é o universitário conhecedor de ervas e segredos e o bruxo é um índio misterioso, os personagens de Paulo, especialmente em O Diário de um Mago, têm outro perfil. São mais tropicais. O autor é um deles, um carioca descontraído que se sente à vontade em usar uma camisa I Love NY, sob um traje medieval de peregrinos. Seu Guia é um designer italiano famoso, que vota no PCI. Daí o mix da sua narrativa oscilar entre modernidade e tradição, corriqueiro e sagrado. O mago pode ser qualquer um de nós. Você pode lutar com o demônio e tomar um bom vinho Riojas a seguir.

Nos dois livros Paulo Coelho refaz trajetórias históricas e religiosas. São interessantes as informações que traz sobre fatos e acontecimentos do passado. No plano das idéias são colocados no mesmo caldeirão padres, bruxos, malucos, pastores, santos, cavaleiros medievais e filósofos, entre outros! A linha central que une toda essa turma é o Eterno Retorno, explorada por Niezstche no século passado. É preciso cumprir a missão da travessia e chegar enfim ao início. Mais uma vez o dejá vu, parece que os anos setenta estão mesmo na moda. Voltar é o que há!

No mais, penso que a verdadeira qualidade de Paulo Coelho é conseguir de fato entrar em sintonia com a expectativa do grande público. As pessoas andam interessadas no aprimoramento pessoal a partir da descoberta de suas energias interiores. Ele nos convoca: todos podemos ser magos. Essa é sua Verdade e Virtude. O leitor de Paulo Coelho se confunde com os personagens e o narrador, especialmente quando este se apresenta como um homem comum vivendo uma aventura extraordinária. O público reconhece o que lê como seu e muitas vezes se esquece que o texto não está bem alinhavado. Deixa de notar que o autor não teve muito cuidado com sua expressão, muito menos a segunda editora na revisão e preparação dos originais.

Os livros tem uma cara muito igual. Isso preocupa. Uma fórmula que deu certo não significa que vai continuar dando. As editoras seguem na esteira de um sucesso até esgotar o nome do autor. Paulo que abra seu olho. Ele tem que ser cuidadoso, deixar de fazer mais para fazer melhor. Dizem que já tem seus royalties adiantados, e que está envolvido em nova peregrinação. Antes do leitor embarcar na sua próxima viagem, será preciso saber se o mago continua atrás de sua Lenda Pessoal ou se foi engolido por compromissos editoriais.

Álvaro Andrade Garcia e Delfim Afonso Jr.
6/1/1989

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Maria do Socorro

Maria do Socorro

Assentadali, confundindo asfalto e esperança, viajante do seco sertão, resvolava e cintilava na multidão esquentada. Meu coração: pedaços retângulos menores até mesmo que um minúsculo rebento de dor. A atenção descida pela avenida encontrava-se com ela: Socorro e seus companheiros: puspulava e demarria pela sua sesmaria, lugar de espírito. Seu corpo arrasado, desdeitado: idéias achataradas, espingoladas, com vontade de correrporali e tramar entre as pessoas, esmolando oquepuder. Me aproximei. Seu-desejo- 2-bonecas. A caixa registrou 27,90, uma senhora protestou contra meu ato, um supérfluo carimbo na noite. Era noite fria de dezembro… Nada nada veio do céu, nem chuva nem vermelho, veio apenas mais noite.

Os transeuntes se foram. Meus olhos bolares irradiaram indignidade. Eles catavam as circulências e conglobavam tudo numa desoluta massamental de dor e clareza. Socorro, socorro, ia-se e perdia-se, uma viajante sem teto, miserável. Prosseguia apenas até o sonho mais proveitoso, entre perebas e cáriesdentais. Seus traços, oh, seus traços! Devolviam-me lembranças: eram víticos, congruentes, acertados. Entre aquele liso cabeloaovento e suas pernas tocando o chão, vinham as rosas, um bule quente de café, os sempremais que a situação. Prometi a ela um lugar na irrelevante pervida das palavras, e depois. Sofri mais um pouco.

 

Álvaro Andrade Garcia

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Monólogo de Merda

Eu estava assim meio aloprado com muito desejo de te falar, MERDA ao mesmo tempo expressar tudo e esquecer, eu pensava na sua silhueta a cada prazer que tinha, cada vista, e cada cama tinha que ser a nossa, e vi pasMERDAsarem cercas e pastagens, serras e cada bar tinhMERDAa uma cerveja que seria a nossa, pensei no que sentia e vi brotar o amor que ainda estava pleno e respirava contente MERDA MERDA MERDA. Queria você ali, eMERDA ficava feliz por que te sentia ali, e pensei nos meus grilos e fantasmas, e resolvi dar uma boa encarada neles, e por isso pensei MERDA outra vez na sua silhueta de luz. Senti corMERDAes passando, e fiquei cada vez mais apaixonado, e pensei mesmo em querer ir mais fundo com você, essa coisa de construir uma ligação mais duradoura, e MERDAdesejei que você tivesse me entendido aquele dia, o MERDAsentido do meu convite, meu arrebatamentMERDAo, as emoções exageradas… Não deu, eu sei, eu criei um desejo mesquinho que deixei crescendo em mim, uma fantasia que sempre tive, MERDA estou afundando à sua revelia, e consegui me afastar ainda mais de você, e hoje só esse sentimentoMERDA MERDA MERDA muito enfurecido. Eu te MERDA odeio te odeio, MERDAquem ama sabe dMERDAisso, e eu queria muito, tinha uma vonMERDAtade MERDAalucinada, queria te ver outra vez.

Álvaro Andrade Garcia

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Suspiro

Se a alma não é pequena e as falanges tremulam como varas prensando a folha, rasgando a folha, ignorando a folha. Se o ânimo é distante, o calor distante, o riso distante, e a falta faz mormaço e manto. Se o corpo ainda não aceita e verga e dobra e evita, se os olhos fazem quinas enquanto pulpita o coração. Se de fato houve o ocorrido, se se viveu o que de fato se viveu, não morre o que se instalou, nessa saudade.

Álvaro Andrade Garcia

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A Mente

Se nesse instante pudesse voltar os olhos para dentro, voltar o que se vê para daonde vem. Inverter a direção. Fosse possível iluminar e dar foco ao que se veria na penumbra do corpo. Agregados e pulsantes, os filetes de nervos e vasos, perfurando o crânio. Um caleidoscópio de luzes-sombra, túneis de estruturas macias. Dentro da caixa reluzente, através das frestas enfim, a visão estarrecedora da mente. Um amontoado de cores pálidas percorrendo um degradê entre o amarelado e o cinza. Uma verdadeira geléia de gordura e água, imersa em litros e litros de sangue e informação. Se fôssemos mais, na análise de cada pedaço, na busca do cheiro e gosto do cérebro. A sua consistência. Os sentidos exaustos não diriam nada. A metáfora estaria morta. O habitante ilustre não mostraria seus dentes. A verdade é uma só: estamos aparelhados para ver o que não está em nós. O pensamento fracassa, a introspeção, a hipnóse, os elementos todos que dispomos não alcançam essa força propulsora que move tudo para longe de si. A mente não esboça segredos, apenas é invisível, não ocupa lugar no espaço. É opaca a tudo isso por que não sabemos ver para daonde vemos.

Álvaro Andrade Garcia