– Amor, estou apavorado, que inferno, estão em toda parte!
– De que você está falando, querido? Por Deus, são quase quatro horas da manhã, vamos dormir, pegamos serviço cedo.
– De que adianta trabalhar, se eles estão atrás de nós, e aos pouquinhos vão nos destruir.
– Eles quem? Querido, o que foi que deu em você? Vem, deixa eu fazer um pouco de carinho… Calma lá! Não precisa ficar agressivo. Eu só quis ajudar. Agora, se você não quer ajuda que se dane, fique aí resmungando sozinho, e apague a luz!
– Tá vendo? Os miseráveis já começaram a atrapalhar meu casamento, estes invisíveis solapam tudo… Querida, não há como nos proteger deles.
– Amor… se você não me diz quem são, como posso ajudá-lo? Além do mais, você não acha que podia esperar até amanhã, para ficar pensando nisso?
– Podia, mas nessa hora eles já vão estar com força total…
– Então deixa para pensar neles na hora do almoço. Que tal? Podemos ir a um restaurante chinês, e lá você me conta tudo. Combinado? Faz tanto tempo que não saímos juntos …Ahh, que sono. Boa noite.
– Como você pode dormir e me deixar aqui desprotegido, exposto a eles? Eu sei que não fazem bem a ninguém, nem a você, tá? Pode ficar aí, fingindo não saber, mas você também está sendo afetada. Eu não vou conseguir dormir essa noite, nem noite alguma.
– Ah, Deus! Amor, você está estafado… Afinal de contas seu serviço no laboratório é exaustivo. O que vocês estão estudando agora lá na Física?
– As emanações espectrais da luz de estrelas… Mas, querida, você não está me levando a sério…
– E poderia? Poderia? Você acorda às quatro horas da manhã, começa a falar parecendo um maluco, dispensa minha ajuda e, ainda, me impede de dormir. O que você quer, você não fala coisa com coisa, e quer que eu te leve a sério?!
– E por que não? Você nunca me levou a sério. Desde que nos casamos você me considera um lunático, e acha meu serviço inútil e desnecessário. Você ri do que faço.
– Mas não é engraçado? Estudar o campo eletromagnético da estrela b546, da constelação ng57457, situada a 234 bilhões de anos luz da terra?
– Não sei qual a diferença entre isso e seu emprego de vendedora. “Madame, que tal esta saia, é a última moda”…,”… esta estampa veio de Paris”… Eu ao menos contribuo para o desenvolvimento da ciência, agora, você…
– De fato, você é o grande cientista que contribui para o crescimento da ciência. Muito bem, e por que você não resolve contribuir para o crescimento da população? Estamos casados há três anos e não tivemos filhos ainda.
– De novo, querida? O médico já disse que o problema é insolúvel. Não entende? Insolúvel. É como a ação nefasta deles, a ciência ainda não tem recursos para resolvê-los.
– Desculpe… é que ando me sentindo muito solitária. Você não me deseja mais… fica enfiado naquele laboratório. Querido, vamos dar um jeito na nossa vida? Vem, me dá um beijo agora.
– É impossível pensar na nossa vida, antes de resolver meu problema com eles.
– Eles, eles, vá pro inferno com eles e tudo mais, você está estragando minha noite, perdi o sono e não consigo dormir mais.
– O quê você disse? Eu ouvi bem? O inferno, o inferno, talvez lá eu esteja protegido. Devido a sua profundidade, pode haver… querida, a quantos metros da superfície você imagina que esteja o inferno?
– Querido, você está ficando louco.
– Não, vamos lá, suponhamos que ele fique a mais de dez mil metros de profundidade. Isabel, me faz um favor?
– Qual?!
– Pegue minha calculadora e a tabela de Reverson-Frier, estão sobre a minha escrivaninha. Preciso resolver esse problema agora.
– Deus meu, endoidou… Querido, se eu trouxer a calculadora, você jura que depois de fazer as contas vai dormir?
– Juro. Anda,traz, por favor. Bem, vejamos o ângulo de inclinação das coordenadas, a provável temperatura e o insulamento… bastará calcular o coeficiente de refração dispárica e o grau estereostático das moléculas, e…
– Eis a calculadora.
– Haa! Fácil, muito fácil, multiplico tudo pela constante de Alexander e …ok! O inferno hipoteticamente seria a nossa solução, estaríamos protegidos, contudo a vida lá… nós derreteríamos naquela temperatura. Ficamos sem solução para o problema. Eles continuarão nos atingindo. Não ria!
– Querido, deixe-os em paz, vamos tentar dormir, são cinco e dez da manhã.
– Tá bom, faz o seguinte, me passa as pílulas para dormir.
– Meu bem, já é a quarta vez nessa semana que você toma delas.
– Me dá dois comprimidos de uma só vez, só assim consigo ter sono.
– O quê? Toma lá então, você que se dane.
– …já estou tendo sono…
– Querido, não dorme não, eu perdi o sono, o dia vai amanhecer, estou com medo de você… você enlouqueceu? Ei? Acorda! Que porcaria, você me paga. Se eu tomar comprimidos perco a hora, tenho que sair às sete. Você vai matar serviço, não vai? Ei! Seu desgraçado, eu não sei pra que a gente foi se casar! Fala comigo… você não está sob efeito do remédio coisa nenhuma, não faz dois minutos que você tomou os comprimidos, seu sono é psicológico, por favor, o aluguel do apartamento vence amanhã, nós não temos como pagar… ei, fala comigo. Diabo!
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Álvaro Andrade Garcia