A última tentação de Morris West
Um Papa em conflito quer abrir as portas do Vaticano para os pobres
O milagre de Lázaro, de Morris West; Tradução de A. B. Pinheiro de Lemos Record, 332p
Padres conservadores diplomatas da Santa Sé religiosos dissidentes, jornalistas especializados, terroristas Árabes, o serviço de inteligência israelense e um Papa em profunda crise de identidade estão reunidos no mais recente livro do notório romancista Morris West. O cenário é velho conhecido de seus leitores habituais; flanamos pelos corredores, quartos e ante-salas do Vaticano que dão materialidades às disputas políticas e ideológicas do catolicismo real. Um pouco à antiga voga da má consciência, o católico West purga seus fantasmas pessoais e religiosos nesses ajustes de contas com a sua Igreja e seus mandatários. Como em outros livros assinados pelo mesmo autor, os bastidores do pontificado romano servem de arena para enfrentmento dos entre os gaviões e os passarinhos do clero.
Em O Milagre de Lázaro, vamos acompanhar a via crucis Lodovico Gadda, que encarna o poderoso Papa Leão XIV, patriarca do ocidente, conhecido com o Martelo de Deus. Pontífice de corte conservador, beirando a matriz reacionário, Gadda terá um oportunidade de virada ao se encontrar as portas de um infarto. O livro é um bem urdido álibi para que se avalie a igreja romana no limiar do terceiro milênio. Ah, ia me esquecendo, serve também para Morris West exorcizar as emoções e os demônios que o acossaram ao se submeter a uma operação de ponte de safena, semelhante à sofrida pelo herói papal. Tocado pela condição de uma fragilidade tão humana, Ludovico irá vacilar entre o uso do Martelo de Deus sobre a cabeça dos católicos de esquerda e a abertura da burocracia da Igreja para ficar mais perto do coração do povo. O percurso do personagem em torno da dúvida sobre o poder da autoridade religiosa é o prato que O Milagre de Lázaro oferece ao depauperado leitor da última quadra do século.
A referência bíblica à ressurreição de Lázaro não está apenas no título. Toda a trama é pautada pela interrogação que persegue o Bispo de Roma: o que teria visto o homem que Cristo trouxe das trevas da morte e como viveu depois do grande acontecimento? Morris West aproveita para esmiuçar os poderes eclesiásticos em meio às penas de Ludovico para se reciclar e dar uma guinada ideológica que satisfaça leitores acossados pela bem aventureança. Algumas páginas chegam mesmo a ganhar o tom panfletário de uma opção pelos pobres que deve agradar as audiências mais ingênuas. É claro que, em se tratando de Mr West, esse proselitismo moral e teológico se faz com estilo. Como já se disse mais de uma vez, a obra de Morris West prima por ser de boa qualidade técnico-literária. Não é por ser comercial que uma certa literatura deva por obrigação limitar-se à etiqueta de mal acabada por deficiência de carpintaria. Nada disso, o livro é bem escrito, bem tramado e bem resolvido para os padrões do best seller.
Em sua trajetória ao longo da narrativa, o Papa atravessa maus pedaços ao enfrentar três antagonistas de escol: o médico sionista Sérgio Salviati, o reacionário cardeal Karl Clemens da Congregação para a Doutrina da Fé e a organização extremista A Espada do Islã. Imaginem que a vida de Sua Santidade, além da ameaça das coronárias, está sob a mira assassina de arábes fanáticos. Diga-se que nesse aspecto Morris West inova. É evidente que a imaginação dos grandes autores comerciais não consegue perceber nada no islamismo além da ignorância, fanatismo, violência e intolerância. E aos povos árabes não resta outro papel que o de bandidos de plantão. Voltando à narrativa, a dúvida hamletiana de Salviati entre ser judeu ou ser italiano não impede que opere com sucesso o Vigário de Cristo e abra as portas da sua clínica para as ações clandestinas da Mossad Israelense em defesa do Papa. O terceiro antagonista é Clemens que, de aliado no controle da cristandade pelo dogma, o conformismo e a obediência irrestrita, se vê desnudado como parte do coro de burocratas que não querem mudanças nas esferas de poder. Este preferiu não centrar a ação no conflito entre protagonistas e antagonistas, antes optou pelo diálogo entre o antigo ego do Pastor e seu duplo recém ativado pelas mãos do Dr. Salviati. O que falta em ação, sobra em caracterização psicológica e psicologismo ao gosto do leitor interessado em monólogo interior pronto para consumo. Esperava-se mais de Morris West, apesar de que em seu conjunto o livro não emocione nem decepcione.
O Milagre de Lázaro é apresentado como o romance que completa a trilogia iniciada com As Sandálias do Pescador e Os Fantoches e Deus. Nos dois livros anteriores, o autor acompanha as histórias de outros dois Papas fictícios, o ucraniano Kiril Lakota e o francês Jean Marie Barette. Ambos são contrastados em suas idéias pelo pesado esquema de poder que transformou o Vaticano no rico e forte Estado que é hoje. Os Papas confundem suas atribuições com as de Chefes de Estado e os cardeais com as de uma corporação de burocratas. Neste último volume da série, Leão XIV pretende virar pelo avesso a máquina estatal e as artimanhas que distanciam os fiéis da Igreja.Trata-se, segundo pensa o protagonista, de voltar à opção de Cristo que pretendia formar pescadores de homens. O grande problema é que os prelados parecem ter perdido a vara de pescar e não se acham hoje motivados a meter a canela na água fria para alcançar o pescado. Como nota amarga, o Papa vive cercado de celibarários entediados e padres sem vocação que decidem saltar do barco antes que afunde. As tintas fortes desse quadro dizem com ênfase que Morris West não vê com olhos otimistas os rumos e o destino de sua Santa Madre Igreja.
Com o lançamento deste romance no ano da graça de 1990, o autor diz ter encerrado sua trilogia vaticana. Estudioso do catolicismo, o ex-seminarista e ex-jornalista promete não voltar ao assunto por que teria escrito tudo sobre a Igreja a que pertence e sobre sua vida espiritual nesta mesma Igreja. Com o verve de seus livros anteriores, Morris West ainda poderia nos entreter com saborosas tramas de bastidor enquanto os frágeis seres humanos que são os prelados, inclusive o Papa, sobrem o abalo pela crise do fim dos tempos e do fim do Papado. Menos mal para o crítido que se aflige com a publicação de outro volume tão morno quanto este O Milagre de Lázaro. Quem sabe a aposentadoria estratégica de West não permita que algum autor comercial se aproprie do seu estilo para nos falar desses temas? Afinal, do mito do fim dos tempos à tese do fim da História estamos apenas a um passo de reconhecer o mal-estar que inspira o imaginário contemporâneo.
Álvaro Andrade Garcia e Delfim Afonso Jr.
19/1/91