Milho Verde Déjà Vu Remix
Faz mais de uma década desde a gravação em vídeo; as águas e o moinho, as vendas, a chuva barroca na capela, a cozinha da roça… eu sabia que teria mais imagens preciosas diante de mim…
Pensei no quarto: não queria filmar nada. A segunda chuva barroca seria só literatura. Deixei o celular na tomada e sai andando até o gramado, que segue plano até a igreja e depois desce suave até a escola e o campo de futebol.
O gramado é o centro de uma grande espiral de terra, que pode ser vista dali. O Lageado cercado de montanhas com o rasgo branco das águas que circundam a vila e seguem para o Jequitinhonha. Sim, estamos nas cabeceiras do rio. Diante de mim o Itambé, uma das maiores montanhas do espinhaço, com 2002 metros de altura, seu cume estava cercado de névoas que contornavam a pirâmide azulada atrás da serraria mais próxima.
Dois feixes de luz abriam espaço entre os cúmulos. Uma névoa fina e úmida batia na face, o sopro vinha de lá. Dois arco iris, um de cada lado da montanha, batendo na terra e penetrando nas imensas nuvens que circundavam o pico.
A lua quase cheia apareceu simultânea, enquanto Ubirajara (uma encarnação graciosa em forma de cão, que viveu e foi enterrada no Sítio de Imaginação) se posicionava saltitante diante de mim. Ele já estava em outro de seus corpos, mas ainda com a coleira anti pulgas.
Mais um plano com a igreja e suas duas palmeiras diante de mim. O cemitério está coberto de capim, até parece que ninguém morre por aqui. Puro engano, o tempo levou da comunidade quatro mulheres, conhecidas por quase todos.
Logo soube, a Jacira morreu de câncer, nova, que dó, lembro dela, amável, forte, poeta e politica, guerreira. A cozinheira e lutadora das causas da negritude passou rápido por aqui. Morreu também velozmente a Rita, do Armazém. Outras que se foram, já eram velhas quando conheci, foi-se uma época. Dona Santinha ganhou o nome do posto de saúde, nossa querida parteira e raizeira. Dona Neusa, da crônica da cozinha mineira, Dona Lourdes… O câncer levou todas elas, as queridas donas da velha geração… entristeço pela Rita e Jacira, que saíram da terra jovens ainda, mereciam estar entre nós.
O Adelmo açougueiro, que depois vendia um fabuloso pastel com caso na sua venda, achei que estaria também morto, pela idade que tinha quando conheci, mas na volta do chuveiro de águas do Lageado, lá estava ele na porta de casa. Não vende mais o pastel, nem a prosa da sua pequena portinha.
As vacas pastam na rua entre os incríveis cães, selecionados em anos de convívio com galinhas, não atacam nem mosquito. Anotei ao menos um nome óbvio e bonito, Rajan, que não quis descer com o neto da dona, mas assentou-se do meu lado debaixo da árvore que fica atrás da igreja. Um lab lata preto e peludo, alegre como ele só. Aliás os vira latas do lugar estão cada vez mais pretos, com aquele pelo e cara de labrador, já sabemos como são mestres em espalhar o dna.
Conheci outro cão engraçado: o olho preto, com estatura de cão de caça, branco malhado fino de cinza. Suas poses, seus asnas, no meio das ruas ainda de terra são dignos de um master de yoga. Continuam pacíficos os cães daqui. Esparramados nas ruas, dormindo em pose, zero de agressividade.
Dessa vez depois de tomar assento no banco diante do bar do Adir, afiei o ouvido com o sotaque da roça, um pouco já abaianado, no nasal e na cadência e fui atrás das bençãos no poço de cascalho da Carijó. Ora de ver também como está o Moinho.
Depois do banho, sai andando pelas ruas do vilarejo lembrando em cada ponto de todos os fatos e pessoas que estiveram naquelas ruas comigo. Todos os tempos se entrelaçaram num desfile. O quarto de esquina quando fui com a Isabela na viagem com o Fox, a viagem com a Luciana, Rodrigo e Ana, ele com um pod de proibidão, brincando de anjo torto no paraíso… O encontro com o Piga na passagem de ano, o festival de inverno e sua turma, que sempre nos levava a um passeio na região, os domínios do Paulinho em São Gonçalo, a casa da filha do Ademil e seus hóspedes, as caminhadas e aventuras no entorno, Capivari, Grota Seca, Baú, as inúmeras visões solares, iluminações e banhos. De alguma maneira o livro Álvaro e o web doc Sertoes.art.br tiveram momentos de trabalho nesse lugar.
Hora de terminar com o desfile, então, procurei o Armazém. Assentei na mesa perfeita, com o visado para o lajeado e a serra do raio, na varanda dos fundos. A tarde caia. Toca blitz e bandas pop anos 80. ‘Fazer amor de madrugada, com jeito de virada, para para pá’. São as espirais do melangè déjà vu…
Veio dar a graça e pedir carinho, e lógico, comida, o Sorriso, cão vermelho de media estatura, a gata branca branca Sofia e o Francisco, preto preto com olhos de pantera, igual à minha Pituna. A turma é da filha da Rita, que tem um quê da mãe, e que assumiu o negócio.
Mais tarde vendo o Ubirajara mijar percebi que era uma garota, na encarnação em questão. Rajan e todos os seus amigos me cumprimentaram outra vez e desci a rua até o Lageado, hoje área estadual de proteção ambiental com 10.000 hectares.
Só digo o seguinte, a época é de floração, caminhei entre jardins rupestres nos campos do Lajeado. De toda espécie, rosa, laranja, branco, azul, violeta, as mais bonitas, as flores do campo. As tais que nascem sem semeadura, delicadas não se cultivam. E o fim disso tudo? Um poço e uma ranhadura na pedra onde se possa tomar sol e nadar, meditar, pensar.
Abriram um café, se chama Veredas, o único que te serve um expresso arábica incrível com vista para um curral do outro lado da rua, com direito às vaquinhas e bezerros, e de quando em quando galinhas, bicicletas, jipes se interpondo. Um caldo, uma tortinha, um café, um suco, o curral enche esvazia, passa uma galinha, a janela ao lado dá prum cafezal, é mole?
Não tem como falar de café sem chegar no imperdível galpão de quitutes da Dona Geralda. A casa dela fica na esquina, diante da igrejinha e no quintal ela fez um galpão grande com um forno de barro redondo no meio. Por 10 reais acontece um self service. Ela vai tirando do forno os biscoitos, bolos, broas, basta servir o café, o leite, manteiga e queijo do lugar. Ela me salvou no domingo depois que todo mundo foi embora e a cidade fechou todas as portas, se não fosse ela passaria fome. Esse é um cuidado, se for fora de fim de semana e feriado tem que garantir a comida com o lugar onde vai se hospedar e levar coisas para completar.
Muitos anos depois a cidade continua especial, e conseguiu se cuidar muito, dadas as condições de evolução urbana nesse início de século. A área de proteção ambiental é um luxo inacreditável que criou um bem comum e a vila tem atividade econômica com o turismo, sem que ninguém se aposse das melhores belezas e águas. O celular pega super bem e a banda é larga mesmo, 6 mb, deu pra ver streaming a minha série preferida. As pousadas têm wi fi, o lugar respira melhoras na infra sem perder quase nada do seu jeito de ser. O Mauro serve no Fogão de Lenha em breve. E já cheirei pelas ruas: pernil, biscoito de polvilho, frango, candeia, sabonetes e flores diversas… jasmins, lírios, dálias, margaridas, cravos.
A pousada André Luiz, onde fiquei uma vez está à venda e o Rancho Velho com as portas fechadas. Foi ali hospedado por chegar em cima da hora, que conheci Dona Neusa. Uma das vendas do filme também fechou. A casa de Aparecida, que passeia comigo pela vila a pedaladas, está toda pintada, mas não sei quem mora lá. Vi umas meninas que parecem parentes. Dela tive notícias já faz algum tempo, que estava adolescente, adulta jovem e que estava estudando em Belo Horizonte. Todo dia eu tinha que tomar água no chafariz cujas pedras estão com lodo fininho, parece que não lavam mais roupa lá, é… chegou a água encanada, mas os quintais continuam incríveis de frutas, flores, milho, abóbora, feijão.
À noite tem forró com sanfona, pop, mpb ou rocão para escolher, tem lua cheia e filetes de água por toda parte. Esfria, outono em Minas Gerais. Hora de usar meu casaco de lã uruguaio. E bora comer uma pizza no Angu Duro. Enquanto saboreio a delícia com presunto de parma e uma pale ale da Baker olho a mesa ao lado com sete pessoas, seis de olho e tocando nos seus celulares. O sétimo, como ficou também só, olhava pro lado sem ter o que fazer.
Não é incrível o que me aconteceu depois que eu desliguei a câmera e a literatura começou a gravar? Como ela revolveu em mim todas as frinchas da memória e me jogou suavemente num fluir de mananciais estésicos. Devo confessar, esse é o presente que me dei para o aniversário, para começar o mergulho mais profundo da minha vida, e escrever a minha obra mais densa.
Pois para completar, não é que o dia 2 de maio nasceu nublado, friorento, com uma luz difusa e suave cobrindo tudo. Mais pé na trilha, pão de queijo quentinho, suquinhos, bolinho frito na hora. O dia ficou apto a cumprir a promessa que fiz para o próximo setênio, contar a estória, e fazer o notebook que trouxe servir para alguma coisa.
Os personagens estão aqui diante de mim, na rua também me procuram, o velhinho banguelo com um cajado que já se aproximou para puxar assunto… como atraio histórias, a rude briga dos cachaceiros no Ademir, as pessoas conversando na rua. A turma toda ‘trabalha na MRV e ganha bem em BH’. O som afiado das vozes, as palavras precisas, a Anglo American em Conceição… O dia em que Cássia Eller morreu, as histórias do Sacy, a festa do Rosário, o dia de Reis…
Segui o cortejo da minha saga e mergulhei na vila que estão criando no meio da mata, depois de fugir da Bahia. Começa aqui a pequena outra e ficcional Vila de Conceicão do Mato Dentro. O teclado dispara e vão sendo cortadas as toras, feito o madeirame, capinadas as roças, queimadas as raízes mais grossas. A mina ganha a proteção de N. Sra. das Brotas e as penas de água são divididas pelas famílias. Lá está a matriarca, ainda criança construindo a sua história até se tornar a Dona Lita e espalhar sua prole pelo Brasil.
À noite no Armazém o aniversário prossegue com um show animado, com muito Jorge Ben Jor, O Paulo estava lá, firme e forte achei que a birita iria acabar com ele. Mas nada, o cara tá inteiraço enquanto Rita se foi…
Na sequência conheci os caras de uma banda e três girls that wanna have fun, uma versão tropical das Bruxas de East Week. E seguimos em caravana, com catuabas selvagens em garrafas de plástico, rumo ao Bambuzinho, a venda ainda existe, o Agostinho não está mais lá, agora funciona um espaço cultural com palco para shows. O astral é o mesmo, rock, reggae, tropicália. E rolou um show muito bom em cima de Gil e mais Jorge Ben, Raul, Caetano. Conheci a galera da banda, o Fernando estava lá, a Pilar, Taís e Tatá brincaram e brindaram comigo. Bem… Tatá, todos que conhecem a história do nome da Jitataoca sabem, é fogo em Tupi. A mesa toda comemorou meu aniversário. E dancei até não aguentar mais de cansaço, além de misturar catuaba cachaça e cerveja. Hora de tomar uma hidratante definitiva e caçar rumo. A noite sempre me vence. ‘O mundo vai acabar e ela só quer dançar dançar dançar’ ‘oxossi ogun são senhores da picada’, ‘tudo passa, tudo passa’…
A estrada já foi asfaltada. As pessoas que andam na rua estão bem mais obesas, especialmente as mulheres, o povo da Axion (lembra do desenho do wall-e, o transatlântico espacial). Tem muita gente de Ipatinga e região, é bem perto vindo por cima. As casinhas dos pobres ainda fazem dinheiro extra com as turmas do vale do aço. E as pousadas abrigam os trabalhadores do ferro, que agora podem passear com os filhos, soltar pipas com logos do desenho Carros ou com o desenho da asa do Batman. Os filhos já brincam com seus tablets e joguinhos, deixando orgulhosos os pais. O lajeado também ficou mais família, uma nova geração que aprendeu a gostar de cachoeira.
O grupo Mandala se apresentou na igrejinha, claro que a lua cheia nasceu atrás, Jorge foi saudado e cantou para nós. E os hipongas deram o ar da graça, com os esvoaços multicores de batas, mantas, crochés, cabelões e dread locks.
Milho verde estranhamente comporta esse tubo de tempo, e ainda passa bem devagar, ainda bom. A mistura de gente mudou um pouco, mas quem é do lugar sempre te cumprimenta na rua. Sempre. É bom dia, boa noite, como vai, o tempo todo. O mundo merecia um dia em Milho Verde. Eu tive a sorte de passar meu aniversário aqui.
Repórter Álvaro Garcia
Para o caderno de turismo e memória do Tempo (fictício)
1 resposta em “milho verde déjà vu remix”
Que presentão! Viajei nos vídeos e na crônica e adorei, em especial, o city tour com a Aparecida.