Ainda no frio
Desconfiados da glasnost os espiões de Le Carré continuam seu jogo
A Casa da Rússia, de John Le Carré
Editora Record, 397 p.
Há algo de novo no front oriental. A perestroika não consegue resolver a obsolescência da indústria e o desabastecimento crônico na União Soviética. O Pacto de Varsóvia entra em colapso com a queda dos regimes comunistas. O pluripartidarismo ameaça a existência do Partido Único, ungido nos anos 20 e exportado na era stalinista. Para completar, crescem os movimentos nacionalistas e separatistas ao lado dos conflitos étnicos. A imprensa internacional não se cansa de anunciar: a Federação Soviética não é mais a mesma. A antiga Cortina de Ferro recebe a corte enamorada de leigos e doutos capitalistas a partir de Berlim Oeste. A imaginação ocidental sobre o Leste Europeu começa a dar sinais de que precisa fazer sua própria reforma dos símbolos e mitos que sustentaram a Guerra Fria.
O irresistível John Le Carré, com a recente publicação de A Casa da Rússia, deu a partida para um novo lance de dardos ideológicos. O cenário foi montado com grandiloqüência: depois do climatério dos dirigentes da velha guarda, Gorbachev traz as novas palavras de ordem da paz, da transparência e da reconstrução. Em meio à desconfiança de que na era Kruschev o entusiasmo era mais genuíno e espontâneo que o atual, Le Carré revisita locações e personagens que o consagraram como especialista em romances de espionagem. Em sua fábula dos azares contemporâneos, reúne o editor inglês Scott Blair à evasiva e fascinante russa Katya, nas peripécias para contatar Yakov, o cientista de renome que deseja passar informações estratégicas ao Ocidente. Segundo ele, o sistema de defesa soviético seria completamente defasado e inoperante. Apenas o editor tem as condições para obter a confirmação do maior segredo militar russo. Como em toda história do gênero, entram em cena os homens cinzentos do serviço secreto. É o bastante para o leitor decolar rumo aos intrigantes bastidores dos senhores da paz e da guerra.
A moral da espionagem é mostrada como a contraface da imagem pública que Bush e Gorbachev querem passar. Nas palavras de um dos homens do serviço secreto, o fato do império inimigo estar de joelhos já é motivo suficiente para não esmorecer e espioná-lo ainda mais. Sem esquecer que se deve chutar o saco de seus súditos cada vez que tentarem levantar do chão. É edificante. O problema se agrava com a paranóia instalada nos altos escalões dos governos e agências ocidentais, que nunca têm certeza se Yakov, codinome Pássaro Azul, fala a verdade ou se se trata de agente da contra-informação. A partir desses ingredientes, Le Carré cria uma das mais intrincadas e deliciosas tramas para os amantes do gênero. Seja qual for a preferência ideológica do leitor, ele terá em suas mãos uma literatura comercial bem acabada que também pode ser lida como saborosa ironia.
Quando leio histórias de Le Carré como A Casa da Rússia, não posso deixar de vê-lo hoje, afastado dos acontecimentos que narra, passeando com seu cão esguio pelos bosques da Cornualha. Também é impossível ignorar que o nosso ex-espião de Sua Majestade guarda a mesma boa vontade para com os soviéticos que um jesuita com a indisciplina de crianças no catecismo. Recentemente, neste caderno Idéias (edição de 3/12/89, n.22), o atilado John veio afirmar sua convicção de que a Guerra Fria terminou para todo mundo, menos para os profissionais. Afastado o perigo nuclear, mais do que nunca a luta pela hegemonia na Europa se acelera. Depostos os mísseis, novas armas são empunhadas. Um jogo mais sutil se instala, com o incremento da mídia e a conquista de novos espaços para a circulação de capitais. Nessa ordem de coisas, Le Carré acredita que o papel do escritor é entrar na batalha do front europeu, arquivada por Roosevelt e Stalin, e que está para começar de verdade.
Se esses são os costumes, nada estranho que os personagens sob o influxo da glasnost percam as características de épocas menos ambíguas. Ð exceção dos homens de cinza, sempre positivos e dispostos a agir com base em muitas certezas, o editor Blair e a doce Katya vivem o jogo da simulação e da identidade inapreensível. O leitor que gosta de caracteres nítidos e definitivos por certo irá praguejar mais uma vez contra Gorbachev e suas ações. Em A Casa da Rússia, não temos certeza de quem é quem e, o que é pior, o próprio narrador se contamina com a areia movediça que sustenta os dias atuais. Palfrey é narrador e personagem a um só tempo, sujeito obscuro que participa das iniciativas do serviço secreto inglês na operação Pássaro Azul. Esse homem de fundo de cena nos relata as inquietações e as dores do demasiado humano Scott Blair. O editor inglês se torna, aos olhos do narrador Palfrey, tão enigmático quanto saber se o atraso do sistema bélico soviético é um blefe ou não. Para quem está acostumado ao preto no branco da ficção digerível, Le Carré definitivamente não facilita as coisas.
O leitor atento vai perceber que o nosso impecável romancista contrapõe os homens azedos do serviço secreto às pessoas comuns como Katya e Scott Blair. Não é à toa que as opiniões destes sobre o desarmamento não coincidem com as da CIA. Para Katya, americanos e soviéticos desconfiam uns dos outros, mas quando unirem suas forças será possível a paz duradoura. Juntos poderão colocar a casa em ordem, intervindo em conflitos pelo mundo afora. Nada mais estimulante para Blair, que andava à deriva enquanto não tinha uma razão de viver. As dificuldades de Katya e sua família o levam a realizar um tour de force para dissimular os espiões e esconder-se dos próprios atos. Nunca antes da glasnost o imaginário da Guerra Fria foi sacudido por um personagem assim. Ele aceita trabalhar para os serviços secretos ocidentais e ao mesmo tempo tem idéias exóticas, como a de que a última esperança que resta é a Utopia.
Não será repetir o óbvio chamar a atenção dos leitores para o estilo de John Le Carré. Especialmente para a maestria como desenvolve os interrogatórios que se tornam o centro da narrativa. Seus personagens falam, conversam, confidenciam e são interrogados. Submetidos ao tratamento bruto dos homens de cinza, ressaltam seu humanismo e a crença em valores triviais, como a liberdade individual e o direito de fazer opções políticas.
Neste confuso fim de século, os anti-heróis Blair e Katya servem no mundo da ficção de contraponto ao casamento de Susan, neta de Eisenhower, com Roald Sagdeev, diretor do Instituto de Pesquisas Espaciais de Moscou. A ironia dos dias atuais reservou para o falecido general de direita e ex-presidente americano ter associada sua voz ao tom da concórdia nas relações internacionais. Le Carré escolheu para a abertura do livro, sabe-se lá onde, uma epígrafe de Ike. Ele diz acreditar que os povos querem tanto a paz que um dia os governos devem sair do caminho e deixar que eles a tenham. O leitor se prepare. O day after da Guerra Fria já começou.
Álvaro Andrade Garcia e Delfim Afonso Jr.
24/2/1990