versão 1: 1994
Uma visita à poesia a partir da obra de Manoel de Barros*.
* Quando não especificadas no texto, as citações foram retiradas de “Gramática Expositiva do Chão”, Civilização Brasileira, 1990.
“Os bens do poeta: um fazedor de inutensílios, um travador de amanhecer, uma teologia do traste, uma folha de assobiar, um alicate cremoso, uma escória de brilhantes, um parafuso de veludo, e um lado primaveril…”
O exercício poético é uma das mais desentendidas atividades humanas. Desde os tempos da poética de Aristóteles muitos buscaram compreender e açambarcar com uma teoria a extensão do seu movimento. Com a publicação da obra completa do poeta matogrossense Manoel de Barros – Gramática Expositiva do Chão, Civilização Brasileira, 1990 – surge uma oportunidade ímpar de se encontrar novas pistas desse ideário difuso e pouco esclarecido que permeia afazeres poéticos e sagrados. Se felizmente em Gramática Expositiva do Chão o tema não se esgota ou se elucida, há nela uma vigorosa metapoética, que oferece ao leitor valiosas chaves para a instalação da realidade poética.
Abandonar as premissas e o conhecimento convencional são algumas providências necessárias para o início da conversa, da aventura que surge com a realização da poesia.
“… escrevo com o corpo. Poesia não é para compreender, mas para incorporar. Entender é parede; procure ser uma árvore.”
“Ao poeta faz bem desexplicar. Tanto quando escurecer acende os vagalumes.”
A incorporação, no seu sentido mais amplo, como o usado acima, movimenta sentidos opostos: trazer as coisas, fazer parte delas e deixar de ser para ser com elas. É o começo da posse poética.
É preciso deixar claro o que é a posse poética. Possuir é um vocábulo e um ato retorcido há milênios. O que se ensina na civilização que farfalha ao redor é o exercício da posse centrípeta, que força as coisas – e pessoas também – a se deslocar de seus movimentos para se acoplarem aos desejos de quem possui. A posse coercitiva, que molda os entes, extraindo deles a sua propriedade para servir à nossa. Nada disso interessa à poesia.
“O fazendeiro do ar”. Carlos Drummond de Andrade.
A propriedade poética não tem arame farpado, ela é justamente o conjunto de características mais íntimas dos entes, seres ou não. As fazendas do ar são terras próprias ao cultivo de novos sentidos. A propriedade poética vem do próprio, da natureza última das coisas.
Faz muito tempo desde que o último resolveu possuir tão lúcido assim, como Millôr Fernandes:
“O pôr do sol é de quem olha.”
A posse poética estende o eu, incorporando o que se apercebe até se tornar. É gratuita, na sua essência transcendental – tem a graça. É desinteressada, desimportante e não pode ser comprada ou quantificada pela simples razão de não poder ser transferida como mercadoria. Os sentidos se despertam para o ato de deixar de trazer as coisas até nós. Os sentidos têm que abandonar a pessoa e ver os entres. Permear o universo. A posse poética acaba por ceder o homem ao universo. Ele se torna propriedade de seus domínios.
“Um homem que estudava formigas e tendia para pedras, me disse no ÚLTIMO DOMICÍLIO CONHECIDO: só me preocupo com as coisas inúteis. Sua língua era um depósito de sombras retorcidas, com versos cobertos de hera e sarjetas que abriam asas sobre nós. O homem está parado mil anos nesse lugar sem orelhas.”
A posse poética traz os acontecimentos a um reencontro. Os sentidos acercam-se das emanações que instituíram as correspondências, diluindo-se. A base da poesia é o gerúndio ao infinito. O exercício poético é aprender a disser.
“Já estão a relvar os trastes… Crescem por cima de um homem, de seu casaco, de seus óculos, de seus urinóis. E entopem seus vocábulos de luxúria e escória. O homem está coalescente às coisas como um osso de ave. Dão-lhe ênfase os destroços. É ente desmanchado a monge. Formigas o descobrem pela fé. Olhando para o chão convê os vermes sendo-o. O nada o aperfeiçoa. (Mas isso não tem metafísica – como fechar um rio com trinco.)”
“Esse homem, teria, sim, o que a um poeta falta para árvore.”
“Eu via a natureza como quem a veste.”
“O homem se arrasta de árvore, escorre de caracol nos vergéis do poema.” “Minha voz é úmida como restos de comida. A hera veste meus princípios e meus óculos. Só sei por emanações por aderência por incrustações. O que sou de parede os caramujos sagram.”
Esse homem repleto de humos, que sente em si a decomposição do universo, e a entende como limo, como matéria em estado de pré-coisas, exercita a poesia, respira a graça de seu ar. Ele encontra as coisas poéticas e vive com elas a sua liberdade. Um seixo, um pedregulho que rola num arroio. Uma folha que leve cai. A curva da fumaça. Dois dentes, um sentimento. O elegante barbeiro da esquina. No universo poético as categorias caem em desuso. Não se agrupam em pessoas, objetos, matérias. No universo poético tudo tende a coisa – no sentido mais íntimo. Tudo está disposto, se entregou, não resistiu à razão do universo. A ausência do desejo, como é visto pela nossa civilização, dá aos materiais da poesia a leveza e a liberdade. Não se aprisiona uma pedra. Pode-se confinar um homem, mas não se aprisiona a sua poesia, dizia Ho Chi Min, no seu diário de prisão.
“Coisa é uma pessoa que termina como sílaba.”
“As coisas que não pretendem, como por exemplo: pedras que cheiram água, homens que atravessam períodos de árvore, se prestam para poesia.”
“Pedras fazem versos? Pergunta de Fernando Pessoa.”
A coisa, a matéria poética, livre e espiritualizada, é elemento de construção de uma nova percepção e relacionamento cósmico. A emanação do universo faz Orfeu vibrar na garganta a sede das palavras. Elas mesmas deixando de ser uma categoria, mas existindo com a intensidade do que significam.
“As palavras invadem esse ermo como ervas… Escutam o luar comendo arvores.”
“Palavras… têm carne aflição pentelhos – e a cor do êxtase.”
Brotam como mosquitos na pedra, se incorporando à matéria poética. Poemas rompem por toda parte. A gramática, como a conhecemos, se transforma. Não existe mais o sujeito agindo, através do verbo, nas coisas, agrupadas no predicado. Não existem adjetivos e advérbios moldando as palavras. Elas passam a vibrar significados, a criar áreas de influência, justaposições e interferências. Se agrupam como elementos de uma paisagem só. Elas mesmas entregues à sua natureza, livres para possuir seus significados. Passam a ser poesia. “No que o homem se torne coisal -, corrompem-se nele os veios comuns do entendimento. Um subtexto se aloja. Instala-se um agramaticalidade quase insana, que empoema o sentido das palavras. Aflora uma linguagem de defloramentos, um inauguramento de falas. Coisa tão velha como andar a pé. Esses vareios do dizer.”
“Um novo estágio seria que os entes já transformados falassem um dialeto coisal, larval, pedral etc. Nasceria uma linguagem madruguenta, adâmica, edênica, inaugural – Que os poetas aprenderiam – desde que voltassem às crianças que foram, às rãs que foram, às pedras que foram.”
Um poema criado assim não serve para nada, numa visão instrumental do universo. Essa é sua virtude: não ter serventia. Seu vigor: estar arejado e pronto para desbravar novas rotas, ou até percorrer as mesmas, encontrando nelas outras razões. O poeta fundido à matéria da poesia ele mesmo, os poemas, todos em transformação:
“Poeta… sujeito inviável, aberto aos desentendimentos, como um rosto.”
“O poema é antes de tudo um inuntensílio.”
“Os nervos do entulho, como disse o poeta português José Gomes Ferreira.”
“Produto de uma pessoa inclinada a antro.”
A força inutilizante e inviável envolvida no processo rompe como o que faz broto, sexo, terremoto ou move o sol. Nessa atividade, o poeta nem sempre é considerado nesse seu estado de universo. Muitas pessoas ainda buscam entender o que lêem. Nessa hora quase sempre perguntam:
“E como é que o senhor escreve?”
E dele ouvem:
“Como se bronha. E agora peço desculpas. Estou arrumado para pedra.”
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Álvaro Andrade Garcia